#5 A história dentro da história
Sua vida daria um livro? Você gostaria de escrever, mas acha que suas memórias não interessam a ninguém? Que tal criarmos uma seção no DESNORTEANDO para trocar experiências e escrevermos juntos?

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O sol ainda não nasceu. A luz, porém, já rompe a escuridão lá fora.
Na tela do telefone, o relógio me diz que são 5h08.
Teoricamente, ainda tenho uma hora e vinte minutos de sono. Sei, porém, que não voltarei a dormir. Está se tornando um hábito, ainda que involuntário.
Todas as manhãs, logo cedo, as ideias me despertam. Voam soltas, tentam ganhar forma, palavras se chocam, se misturam, se reconstróem.
Até que, finalmente, uma sentença ganha sentido. Encadeia mais duas frases…
Aos 11 anos, eu já tinha escrito dois romances policiais. Inspirados – um adjetivo suave, é preciso ser honesto – em Ágatha Christie, cujos livros eu lia avidamente.
Hora de pegar o caderninho e a lapiseira. Começou o parto da próxima carta do DESNORTEANDO.
O caderninho preto está sempre por perto, é companheiro antigo. A cor, claro, nem sempre foi essa. Tive pretos, verdes, vermelhos…
Desenhos na capa, evito. Prefiro capas lisas. Pelo menos desde que passei a comprar eu mesmo os caderninhos em que lanço minhas anotações.
Nem sempre foi assim, claro.
Meus livros de criança foram escritos a lápis, em cadernos escolares. Encadernamento em espiral. Ainda lembro das longas orelhas marrons do cocker spaniel que ilustrava uma das capas.
Hoje, as capas são preferencialmente lisas, obrigatoriamente duras. Velha mania que se cristalizou ao longo da carreira como jornalista.
Repórter não exibe bloco ilustrado na frente da fonte. Especialmente se trabalha em política. Eu cobri duas eleições presidenciais no Brasil.
– O que tem nesse seu caderninho, hein?
Meu filho caçula, Caio, fez essa pergunta mais de uma vez. O caderninho tem esse poder. Desperta a curiosidade das pessoas.
Eu faço mistério, desconverso, alimento o folclore. Faz parte do show.
Meu pai me via com o caderno. Eu não fazia mistério. Escrevia livros. Quando completei 12 anos, ele me deu uma Olivetti Lettera 82 portátil e me matriculou num curso de datilografia.

Desviar-se das perguntas é técnica. Aprimora-se quando entrevistamos políticos. Fiz muito disso naquela outra vida, quando morava nas redações.
No início, sempre com o caderninho na mão. É mandamento do Jornalismo:
Caneta e bloquinho carregarás sempre, incluindo domingos e dias santos.
Lapiseira, no meu caso, não caneta. Sempre preferi escrever com lapiseira. Grafite 0.9 mm. Nem tão fina, nem grossa demais.
Não deixa de ser simbólico. Em grafite, palavras não são indeléveis. Quase como se eu acreditasse que minha escrita não merecia sobreviver ao tempo.
Eu já tinha ouvido aquela frase infeliz que citei na carta passada. Ainda não tinha, porém, desistido do sonho. Escrevi um terceiro livro. Mais original, foi o primeiro totalmente datilografado.
Quando a experiência cresce, a gente passa a questionar dogmas. Não demorou para que eu deixasse de anotar tudo nas entrevistas.
Quando anota o tempo todo, o repórter registra as frases, mas perde a cena. Igual a assistir filme lendo a legenda, sabe?
Eu exibia o caderninho, muitas vezes fechado. Como se fosse um recado: “Posso anotar, mas só se eu quiser, só se for importante”.
Eventualmente, eu registrava uma ou outra palavra. Uma frase, uma ideia.
Sem obrigação de anotar, eu me concentrava em observar, escutar a fonte. Memorizava o que era importante, descartava o que era entulho.
Vi o anúncio na revista Veja. A Bienal Nestlé de Literatura era um concurso aberto a todos. Decidi inscrever meu livro. Ia mostrar àquela professora de Orientação Vocacional que ela estava errada.

Nem tanto quanto o gravador ou o microfone, é verdade, mas o bloquinho, também tem seu poder de intimidação.
As anotações em excesso punham o entrevistado em alerta. As melhores matérias, percebi com o tempo, aconteciam com o entrevistado à vontade.
Por isso, eu sempre ouvia mais do que falava. Quieto, eu observava, usava o silêncio como convite. Para preenchê-lo, o entrevistado falava mais.
Quase sempre, falava o que não queria.
Nunca fui o repórter que tenta parecer superior ao entrevistado. No início da conversa, eu só fazia perguntas inofensivas. As cruciais, ficavam para o final.
Pergunta é sempre um risco. Revela a intenção e entrevista é quase um pôquer. Se você mostrar sua mão de cara, nunca vence a rodada.
Uma professora fez a revisão ortográfica. Um amigo fez as cópias do original na copiadora da fábrica do pai dele. E lá fui eu, confiante, despachar nos Correios os pacotes para a Bienal Nestlé.
Faz tempo, deixei de atuar como repórter. Nas redações da imprensa escrita, a mais nobre é também a pior remunerada entre as funções do Jornalismo.
Eu havia aprendido a observar, registrar, escrever uma história bem apurada.
Virei então, editor. Fui aprender a trabalhar a escrita bruta que vinha das ruas. Afinal, nenhum texto nasce de uma só vez. O parto é sempre longo.
Editor, redator-chefe, editor-executivo… Degraus ascendentes na carreira. Equipes, responsabilidades maiores, salário sempre melhor.
Escrever, porém, eu não escrevia mais.
Alguns meses depois, a Nestlé devolveu meus originais. Numa carta, agradecia a participação. Não venci o prêmio. A professora estava certa? Mergulhei numa crise. O que eu ia fazer da vida?
Depois de passar para a “cozinha” das redações, eu não precisava mais de caderninhos. Nem pretos, nem de cor nenhuma.
Jamais deixei, porém, de carregá-los comigo. Às vezes, passavam anos vazios.
Vazios, mas sempre por perto. Sobre a mesa de trabalho, ao lado do computador, na mochila que levava aonde quer que fosse.
Até a inspiração começar a me assaltar com os primeiros raios de luz da alvorada. O caderninho, então, passou a dormir ao lado da cama...
O caderninho e a lapiseira 0.9 mm*.
Nas páginas em branco começaram a nascer rascunhos. Cenas, personagens, universos ficcionais… Premissas, plots, conflitos morais de protagonistas.
Memórias, reflexões, uma curiosidade que chamou minha atenção num dia, passando de ônibus por uma rua de Berlim.
Quem sabe, no futuro, isso não vira um conto?
Minha professora de Redação, dona Ofélia sabia da crise. Um dia, ao devolver um texto, ela apontou a rota de fuga: “Por que você não pensa em ser jornalista? É uma boa profissão para quem escreve.”
Em Bali, o caderninho começou a ganhar outros registros. Observações do ambiente, dos costumes, da energia do lugar e das pessoas…
Quem lê minhas cartas sabe, eu sou cético. Por isso, sou incapaz de explicar racionalmente o que acontece por aqui.
O fato, porém, é: em Bali, comecei a sentir a energia que emana de pessoas ao meu redor. Fruto de uma mente criativa? Ou meramente atormentada?
Os místicos explicam: pela ilha cruzam seis vórtices de energia purificadora. Não sei se acredito em vórtices de energia, então, não tenho resposta.
Naquele dia, decidi ser jornalista. Deu certo, até a escrita perder lugar entre minhas funções na redação. Do jornalismo, restaram boas memórias, aprendizados fundamentais e os caderninhos. No que me acompanha hoje, nasceu o primeiro rascunho desta carta.
*P.S. - Mais um simbolismo a conspirar na ilha dos vórtices de energia: quando fui iniciar esta carta, descobri que havia perdido minha lapiseira 0.9 mm. Qual será o recado do cosmos com essa ocorrência temporalmente tão cronometrada?
Nova seção no DESNORTEANDO
Como mencionei nesta outra carta, em Bali, passei a frequentar um clube de escritores que se reúne na escola dos meus filhos. Descobri, assim, a importância da troca sem julgamentos com outros escritores.
Hoje, quero abrir uma ponte para quem flerta com a ideia de trilhar esse mesmo caminho.
Sua vida daria um livro? Você gostaria de escrever, mas acha que suas memórias não interessam a ninguém? Eu também tenho esse receio, mas…

Na semana que começa, criarei uma seção no DESNORTEANDO sobre os processos criativo e curativo envolvidos na escrita de memórias.
Uma espécie de “como escrevo”.
O objetivo é compartilhar técnicas, reflexões, angústias e conquistas com leitores e escritores que também se aventuram nessa arte.
Você se interessa em participar de um grupo virtual de escritores? Basta avisar nos comentários que eu envio mais detalhes…
Participando ou não, posso contar com sua ajuda para criar o nome da seção? Ocorrem-me, a princípio, duas opções:
Escrevivendo – em homenagem à escritora Conceição Evaristo, criadora do termo Escrevivências para denominar “a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida”.
CriativaMente – Nada muito original. Não joguei no Google, mas já devem existir projetos com esse nome por aí.
Topa me ajudar na escolha? Aceito sugestões de outros nomes!👇🏼
Ou vote num dos dois nomes que sugeri acima.👇🏼
Vamos trocar experiências inspiradoras e escrever juntos?
Follow Up Zero
Atualização semanal das cartas ao vento.
🌞 Esta semana iniciei a publicação de versões em inglês das cartas do DESNORTEANDO. Estão em outra plataforma. A primeira carta já fez sucesso por lá. Foi incluída numa lista de leitura organizada pelo professor Rui Alves, que tem mais de 26 mil seguidores.
🌻 As leitoras revisoras estão se revezando por aqui. Esta semana, as queridas Fernanda e Nancy – minha irmã – encontraram erros na carta sobre os passarinhos. Correções feitas. Agradeço encarecidamente.
🌞 Para facilitar a navegação na homepage da Newsletter, as cartas passaram a ser numeradas a partir desta semana. Isso ajudará, leitores novos a identificar a sequência de publicação.
🌪️ Moçambique, lamentavelmente, entrou no periogoso caminho de normalização da crise. Não há solução à vista. A Frelimo continua apegada ao poder, a população segue altamente insatisfeita. O número de mortos em confronto com as forças de segurança subiu para 50 e contando…
Nunca tive tempo de escrever a não ser artigos acadêmicos... aos 40, pensei em escrever um livro, sem saber o quê escrever, deixei a "vida me levar", aos 45, li Elena Ferrante e amei a forma como ela trata as relações, fiquei inspirada, mas ainda sem uma luz no fim do túnel. Aos 55, Marcelo Rubens Paiva dormiu na minha cabeceira, a autobiografia é um gênero tão interessante que estou às voltas com Édouard Louis contando sua vida numa França caipira e preconceituosa...
Quanto aos artigos e capítulos acadêmicos, vão bem, obrigada...
Eu sugeriria ainda: "escritaviva"...
Bj, mano!
Que texto gostoso de ler, Ferdinando. Adorei sua perspectiva sobre a lapiseira 0.9. Sobre o nome da seção, meu voto vai para o “Escrevivendo”. E, se o grupo incluir também pessoas que amam escrever, mas nunca estudaram sobre, eu adoraria participar!