[Mundo Afora #4] Cangurus, lagos e a droga da vida digital
Ser capaz de se entediar é um aprendizado para a vida. Um dia, eu espero, meus filhos entenderão isso.

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A tarde caminha para o final. O sol baixo projeta sobre o asfalto as sombras dos eucaliptos vermelhos que margeiam a estrada. Por trás das árvores, a luz doura enormes extensões de pastos. Cruzamos, a 80 quilômetros por hora, um ponto ermo na região sudoeste do mapa da Austrália, entre as cidades de Albany e Margaret River.
– Olha o canguru!
A exclamação de Luca, cheia de excitação e surpresa no banco de trás do carro, me desperta do torpor da estrada.
– Ali tem mais, são vários! Pare o carro!
A estrada não tem acostamento. Eu procuro um lugar, encontro uma brecha e encosto na entrada de uma propriedade. O portão está aberto. Estaciono o carro para que possamos ver os cangurus com calma.
A supresa de Luca me lembra outra passagem envolvendo uma viagem de carro em família. Foi no início de 2016. Luca tinha 5 anos e ia sentado na cadeirinha para crianças.
O cenário era diferente. Altos ciprestes carregados de neve ladeavam o caminho que serpenteava por uma encosta em Serra Nevada, na Califórnia.
Lá embaixo, Lake Tahoe parecia lutar contra o congelamento.
– Olha, um lago.
Não havia surpresa nem excitação na vozinha de Luca. Era só um lago. Ele já tinha visto outros.
– Lago parece Lego…
Ele brincava muito com Legos naquela altura.
– Acho que eu sei escrever essa palavra.
A mãe o estimulou a tentar. Nós viajávamos com pranchetas, papel e giz de cera para que Luca e Caio se distraíssem das longas distâncias.
Luca pegou o papel e escreveu Lego, imitando as letras que se acostumara a ver nas caixas do brinquedo. Em seguida vieram lago, ligo, logo…
As duas descobertas têm em comum um detalhe: a ausência, no carro, das parafernálias digitais portáteis.
Luca e Caio iniciaram a vida escolar na Pedagogia Waldorf. Não usavam tecnologia.
Contrariando a tendência que já se consolidava na época, eles não viajavam com tablets ligados em desenhos no YouTube.
Se estivesse na frente de uma tela, Luca não teria visto o lago. Não teria começado a aprender a escrever sozinho.
Nos anos que separam Lake Tahoe, na Califórinia, e Margaret River, na Austrália, a tecnologia invadiu a vida dos meus filhos.
Chegou como uma doença. Trazida pela Covid.
No segundo ano de pandemia, com a escola ameaçando ficar fechada por tempo indefinido, nós deixamos a Pedagogia Waldorf. Fomos para outra escola que oferecia aulas online.
Foi um choque. De um dia para o outro, eles passaram de um cenário de acessso limitado ao mundo virtual para outro em que ficavam quatro horas por dia na frente de telas de computadores.
Era um caminho sem volta. Eles adoraram a novidade e eu me resignei. Aceitei a derrota.
Era aquilo, ou deixá-los mais um ano praticamente sem escola.
Com as telas vieram as novidades da existência digital.
Não automaticamente, claro. Eles não tinham idade, ainda. Logo, porém, passaram a pedir mais.
Luca mudou de escola de novo ao final do 5º ano. Não queria perder contato com os amigos. Aos 11 anos de idade, ele era o único da sala que não tinha smartphone. Todos os outros já estavam no WhatsApp.
Foi assim que Luca ganhou seu primeiro telefone. Pouco tempo depois, já estava no Instagram e no ano seguinte, Caio trilhou o mesmo caminho.
Os telefones tinham limite de tempo de uso, controle de apps. Viraram um cavalo de batalha. Eles sempre forçando por mais, eu e a mãe tentando controlar.
Nosso objetivo era ganhar tempo. Eles precisam desenvolver capacidade crítica para receber o conteúdo que o algoritmo despeja impunemente pelas telinhas.
É uma luta inglória. Como uma droga digital, o algoritmo exerce controle poderoso sobre desejos e anseios de seus usuários.
As crianças, infelizmente, não têm maturidade para perceber os objetivos ocultos das supostas piadinhas e vídeos engraçadinhos que recebem. Reproduzem tudo e passam a absorver valores transmitidos pelo algoritmo.
No meio dessa batalha, chegamos a Bali.
A nova escola, Green School, alfabetiza para a mudança climática.
Tenta despertar consciência ambiental. Nosso impacto na Terra não precisa ser negativo. Podemos aprender com a natureza a impactá-la positivamente.
Para isso, porém, a escola pede que as crianças tenham computadores, ou tablets com acesso à internet.
Além dos telefones, Luca e Caio ganham tablets. Novas armas a serem controladas na batalha contra as telas.
Véspera do embarque para a Austrália. Vamos viajar com pouca bagagem. A mãe e eu decidimos. Os tablets não terão lugar nas malas. Ficarão em Bali.
Luca se revolta com o decreto.
– Como assim? Nós vamos passar horas em carros!
É verdade. Cruzaremos milhares de quilômetros de estradas chatas!
Além das redes sociais e do uso na escola, o tablet virou uma tevê portátil. Uma tela onde Luca, mais do que Caio, baixa filmes e séries da NetFlix.
Tentamos explicar, mas ele não ouve. Debate-se contra a decisão por quase uma hora. Argumenta muito, tenta nos vencer pelo cansaço…
– Vai ser uma chatice! Não vai ter nada para fazer!
Não funciona. Não dessa vez. Os tablets, ficam em Bali.
De volta ao fim de tarde, na beira da estrada entre Albany e Margaret River.
Descemos do carro devagar. Os cangurus se erguem sobre as patas traseiras. Orelhas em pé, eles nos observam de longe. Como se tentassem farejar, no ar, nossas intenções.
Uma cerca nos separa. Eles estão dentro de um pasto. Circulam livremente pela área destinada ao gado. Parecem não ligar para os bois.
Já com os humanos, é diferente. Assim que damos os primeiros passos na direção da cerca, eles disparam pelo campo.
Afastam-se de nós, pulando graciosamente sobre as patas traseiras.
Luca está visivelmente encantado com a novidade. Ele já conhecia os cangurus por fotos em livros, vídeos na internet… Mas a mágica de vê-los ali, tão perto, é incomparável. E foi ele que os viu primeiro, pela janela do carro!
Eu me aproximo do meu adolescente ainda contente com a descoberta. A frase está na ponta da língua, mas eu a seguro. Melhor não verbalizar. Não ainda.
Deixo ele curtir o primeiro contato com os cangurus. Mais tarde explicarei, caso ele ainda não tenha entendido.
Foi por isso que deixamos os tablets em Bali.
Para permitir que eles vissem o mundo pela janela do carro.
Para abrir espaço para a chatice do tédio.
Sem algortimos a limitar a informação que ele recebe, Luca pode enxergar os cangurus na beira da estrada.
Ser capaz de se entendiar é um aprendizado necessário para a vida. Um dia, eu espero, meus filhos entenderão isso.

Follow up Zero
🌞 A viagem pela Austrália tem sido intensa. Tive pouco tempo para interagir com os leitores. Até a newsletter atrasou! Por isso, não teremos follow up esta semana. No ano que vem, eu atualizo as duas cartas. 😉 Uma boa passagem de ano para todos!
Acho que todos nós pais e mães, enfrentamos a mesma batalha contra as telas. Me identifiquei muito com a preocupação no seu relato. O meu descobriu as alegrias de um jogo de tabuleiro essa semana :)
A luta contra telas tem rolado do lado de cá também, não temos como fugir totalmente, mas ter essa percepção é excelente. Percebo que é no tédio que minhas filhas interagem uma com a outra, descobrem novas brincadeiras e dão espaço para a criatividade. O tédio é essencial para aprendermos, para conhecermos coisas diferentes. Boas férias e bom final de ano para ti e sua família ☺️