Covardia
Para você foi um tombo. Uma queda vertiginosa. Do paraíso ao inferno em apenas três palavras: "Não estou feliz".
Durante meses, naquele doloroso processo de separação, você repetiu as mesmas perguntas. Às vezes com raiva, às vezes entre lágrimas. No final, quase em tom monocórdico, as palavras exauridas de emoção, embaladas pelo cansaço:
– Por quê? O que deu errado? Foi algo que fiz? Que fizemos? Que você fez?
Covarde, ele nunca respondeu.
Nunca contou as verdades que tentou esconder dele mesmo nos quase três anos em que vocês namoraram. Nunca disse que naquela noite em que vocês se conheceram, o motivo dele ter se aproximado e puxado conversa havia sido a amiga que te acompanhava. A sua melhor amiga.
Ele era divertido, espirituoso, boa conversa… Vocês ficaram de papo a noite toda, os três, bebendo, rindo. Ao final, cada um seguiu seu caminho.
Sem assédio, beijos, barra forçada, sem maiores expectativas. Tudo suave. Descompromissado. Você tinha gostado da conversa, da suavidade dele, sem pressões… Tinha ficado ligeiramente interessada.
Você estava saindo de uma relação abusiva… Quer dizer, naquele tempo ninguém chamava assim.
Só anos depois você entendeu. Era uma relação abusiva.
Havia começado a partir de assédio no trabalho, seu chefe, anos mais velho… Um cara obtuso, dominador… Você se submeteu até onde deu. Ao terminar, foi demitida. Péssimo. Você estava machucada, nem três meses ainda desde a separação…
Apesar disso, topou encontrá-lo quando ele telefonou. Ele tinha conseguido seu telefone com a dona da festa em que haviam se conhecido.
O covarde não contou que havia ligado para a dona da festa para pedir o telefone da sua melhor amiga. Não contou que a dona da festa havia tirado a outra do foco e o convencera a ligar para você.
Ele a convidou para sair, jantar, outra festa depois, carona para casa, beijo na boca.
Sexo, não. Sexo veio ali pelo terceiro, quarto encontro? Demorou.
Não que você fosse preocupada com pudores de prazos, mas não andava a fim de transar depois dos traumas do namoro anterior. Ele nem sabia dos traumas, mas foi cuidadoso. Soube esperar… Era galante, encantador…
Você apreciou a paciência, sem saber que ele não tinha pressa porque também estava machucado. Ele nunca contou que havia sido dispensado pela namorada anterior, uma garota que virara a cabeça dele.
Nem que a garota morava a poucas quadras da sua casa e que durante meses, mesmo depois de vocês terem se tornado oficialmente namorados, ele passava na porta da casa dela na madrugada, o carro em baixa velocidade, na esperança de vê-la por ali, chegando da balada.
O covarde ainda amava a namorada anterior quando vocês começaram a namorar, mas não contou nada.
Aliás, quem começou a chamar aquilo de namoro?
Você não se lembra… Naquela época já não se pedia em namoro. As pessoas simplesmente ficavam, iam ficando e de repente, era namoro.
Engraçado você ter esquecido, você sempre prezou tanto as datas…
Mas você se lembrava bem de quem dera o passo seguinte. O noivado. Coisa mais cafona, hoje você pensa. Na época,você gostava dessas convenções.
Foi ele quem te pediu em casamento. Quanto a isso, não há dúvidas.
Era o segundo aniversário de namoro. Ele a levou para jantar. Na hora de trocar presentes, ele te deu uma caixinha. Uma aliança de ouro.
Você chorou, perdeu o ar… Estava sendo pedida em casamento! Num jantar à luz de velas, num restaurante francês à meia-luz!
Não teve noivo ajoelhado nem violinos tocando She, do Elvis Costello, que havia voltado à moda por causa de um filminho fofo em que Julia Roberts fazia par romântico com Hugh Grant. Tirando isso, foi tudo perfeito. Parecia a realização de um sonho!
Para não estragar sua felicidade, ele não disse que havia comprado o anel porque estava sem ideia do que lhe dar de presente. Àquela altura, ele já sabia. Você se magoava quando ele não se preocupava com o presente…
A falta de criatividade na escolha de presentes era um sinal. Faltava amor e aquela história estava durando mais do que deveria.
O anel acelerou o relógio. No fim de semana seguinte, as famílias foram apresentadas. No outro, vocês procuravam apartamento. Um mês mais tarde, entraram num financiamento. Apartamento comprado, casamento marcado!
Uma loucura que acentuou a angústia do covarde, incapaz de te dizer que não queria nada daquilo.
O sexo piorou. Já vinha morno desde antes, uma coisa mecânica, meio que na obrigação. Mas você atribuía isso à pressão. Preparativos, para festa, escolha de bufê, menu, lista de convidados…
Tudo isso contribuía para a falta de libido. Ou pelo menos era nisso que você acreditava, assoberbada pela carga de tarefas para garantir o sucesso do grande dia.
Jamais passaria pela sua cabeça que o homem da sua vida pudesse estar transando com outra.
Sim, na reta final antes do casamento, o covarde iniciou um caso com a chefe dele na agência de publicidade em que trabalhava.
Ele nunca contou que as noites que dizia passar na finalização de campanhas eram gastas entre as pernas da amante, que tentava convencê-lo a desistir do casamento.
No dia da grande festa, muita animação, comida, bebida, música ao vivo… A banda tocou She, do Elvis Costello, claro… Não poderia faltar.
Os 500 convidados viram o que todos esperam numa festa de casamento perfeita: casal feliz, em êxtase diante da nova fase de vida.
O covarde se divertiu de verdade? Ou estava fingindo? Ele te desejou na noite de núpcias na suíte luxuosa do hotel mais caro da cidade? Ou estava figindo?
Essas dúvidas surgiram dois anos depois, quando ele criou coragem para dizer:
– Não estou feliz.
Para você, foi um tombo. Uma queda vertiginosa. Do paraíso ao inferno em uma frase de três palavras.
A coragem dele, porém, era parcial. Ele queria sair, mas não explicava a razão.
– Por quê? O que deu errado?
As suas perguntas eram respondidas com evasivas, com silêncios…
Vocês entraram em terapia até ele se mudar do apartamento em que haviam investido tanta energia, tanto dinheiro.
Era um tempo. Para colocar a cabeça no lugar. Você exigiu prazo.
Seis meses haviam se passado desde a frase de três palavras que havia plantado a crise no relacionamento. Você estava cansada.
Um mês. Foi o prazo que combinaram. Um mês fora de casa para ele tomar a decisão.
Na véspera da resposta, ele pediu para vê-la. Foi até a casa que haviam montado juntos cheio de silêncios, olhar perdido. Você se ofereceu e ele partiu para cima.
Com uma vontade que nunca haviam demonstrado, vocês transaram loucamente no sofá da sala de estar. O sofá de grife famosa que você tanto presava. Treparam com volúpia, tesão.
Foi a melhor transa da história do casal.
Nem antes, nem durante, nem depois, o covarde teve coragem de contar. A decisão só seria anunciada no dia seguinte por um ofício extrajudicial enviado pelo advogado constituído por ele para conduzir o divórcio.
– Por quê? O que deu errado?
O tempo se encarregou de esvaziar as perguntas. Terminada a fase de audiências judiciais, vocês nunca mais se viram.
Você sofreu, superou, se reergueu. Casou de novo, teve filhos, a vida seguiu.
As redes sociais, porém, não deixaram que perdessem o contato por completo. Você soube que ele trocou a publicidade pelo cinema quando o primeiro roteiro dele virou filme de sucesso.
Soube pelas redes que ele havia se casado de novo. Três vezes, três filhos, um de cada esposa.
Que ele havia se mudado para a Califórnia entre a segunda e a terceira mulher, onde emplacou roteiros em Hollywood.
Não era pouca informação, mas era tudo. Vocês nunca mais haviam se falado, nem por direct messages, nem por comentários públicos… Nada.
Até a semana passada, quando você foi surpreendida por uma mensagem dele no Facebook.
Ele estava de passagem por São Paulo, queria convidá-la para um café. Aceitaria encontrá-lo no Girondino, na Rua Boa Vista?
Era a cara dele, um café centenário no centro da cidade.
Você ficou surpresa. Não respondeu, a princípio. Pensou mesmo em não responder, apenas ignorar. O que ele poderia querer depois de 30 anos?
Dois dias mais tarde, porém, ele escreveu de novo. Queria mesmo encontrá-la, mas entenderia se você não quisesse…
Você queria? Não. Ao mesmo tempo, porém…
De que forma aquilo te afetava? Você tinha se casado de novo, amava seu marido… Amava? O quanto se pode amar alguém depois de tantos anos? Amava, sim. O marido, os filhos, o mais velho já cursando cinema na USP…
Pronto. Esse era um bom motivo. Sepultar as diferenças com o roteirista em Hollywood poderia abrir caminhos para o filho… O que a gente não faz pelos filhos?
Você aceitou o convite.
Sentada à mesa do Girondino, onde chegou adiantada, você revisita esse passado enquanto saboreia um mate gelado, sem açúcar.
As memórias são interrompidas pela visão dele atravessando a Praça São Bento. Ele envelheceu bem.
Magro, parece forte, a pele queimada pelo sol da Califórnia contrasta bem com o cabelo grisalho. Está melhor do que quando jovem…
Ele se aproxima, você se levanta. Estranhamento. Devem se abraçar?
Optam pelo aperto de mão, um beijo no rosto. Velhos amigos que não se encontram há muito, mas sem intimidade maior para um abraço.
Ele se acomoda à sua frente, pede um expresso duplo, pães de queijo, você quer mais um mate gelado, sem açúcar.
Quanto tempo, pois é. A conversa transita pelas amenidades. Os filhos de cada um, ele sabe que o seu cursa cinema, oferece ajuda para entrar no mercado, você agradece…
Ufa! Missão cumprida. Você nem precisou pedir nada. Partiu dele a oferta… Ele continua galante, sempre foi. O maior ativo dele na arte da conquista.
O silêncio se instala. Ele a observa, você se incomoda… Que situação mais esdrúxula… Ele quebra o silêncio.
– Você é feliz? Quero dizer, foi feliz, continua sendo, depois…
Ele deixa a frase incompleta. Você o encara estupefata.
Feliz? Que porra de pergunta é essa? Quem é feliz? O que é felicidade? Sim, você foi, às vezes ainda é… Feliz… Em outras vezes, não.
Quem é feliz o tempo todo?
Nem a felicidade da Julia Roberts com o Hugh Grant durou mais do que os poucos segundos das cenas no encerramento de Noting Hill!
Você sente a raiva crescer, tem vontade de despejar essas respostas na cara dele, mas se controla.
– Sim, sou feliz. Não posso me queixar da vida…
Você não devolve a pergunta. Está se lixando se ele é feliz ou não.
O silêncio se instala novamente, ele a observa. Você está inquieta. Irritada? O que ele quer com essa conversinha? Assim que o garçom entrega os pedidos, você quebra o silêncio. Prática, objetiva.
– Fiquei surpresa com sua mensagem, depois de tanto tempo… Você certamente não me chamou aqui para confirmar o que já sabe pelo Facebook, certo? Foi para me perguntar se eu sou feliz?
A incredulidade está presente no seu tom de voz.
– É, não foi para isso… – ele ganha tempo levando xícara de café à boca.
– Então?
– Suas dúvidas, sabe?
– Minhas dúvidas?!
Seu coração acelera. A irritação agora é cristalina na sua voz.
Ele pousa a xícara sobre o pires, se aproxima da mesa.
– Aquelas perguntas que nunca respondi quando nos separamos…
Você está atônita. Todo esse tempo depois? Ele continua.
– Sinto que preciso contar, te devo isso…
– Contar o quê?!
– O que aconteceu…
– DEPOIS DE 30 ANOS?!
– É uma necessidade minha. Os anos passaram, sabe esse lance de desconstrução da masculinidade? Então, eu sou outra pessoa… Sinto que a gente se afastou porque não fui capaz de dizer a verdade…
– Ah, tenha paciência!
Você o interrompe e se levanta da cadeira.
– Verdades, eu já tenho as minhas. Não quero as suas.
Você alisa a saia, coloca a bolsa debaixo do braço. Aponta para a mesa, antes de se dirigir para a rua.
– Essa conta é sua.
Que massa, gostei!
Não para não. Força e fé.