Mal-entendido
O motorista apressado emparelha comigo, começa a me encarar. Eu peço desculpas com a mão, ele não aceita. O cara quer brigar no meio da madrugada.
Este é um exercício de autoficção. Partes da história são reais, outras são ficcionais; outras ainda, misturam ficção e realidade. Esta publicação inaugura duas novidades: o início da minha colaboração com a
e a criação de uma seção aqui na Newsletter dedicada a contos e crônicas. Boa leitura.Eu havia saído da balada, parei num posto de gasolina para completar o tanque. Ganhei uma lavagem naqueles escovões automáticos. Passei o carro na ducha e peguei o caminho de casa.
Tudo isso no meio da madrugada. Duas, três da manhã? Não lembro mais. Eu devia ter uns 25, 26 anos. Foi há muito tempo…
Ali pelas tantas, transitando na faixa da esquerda pela avenida de alta velocidade de São Paulo, vejo pelo retrovisor um carro que se aproxima piscando os faróis. Imediatamente, mudo para a faixa do meio.
No exato momento em que o carro de traz faz o mesmo para me ultrapassar pela direita. Eu percebo o erro, volto para a esquerda, mas é tarde.
O motorista apressado emparelha comigo, começa a me encarar, gesticular, parece exaltado. Eu peço desculpas com a mão, mas ele não aceita. Abre o vidro e começa a tentar bater no meu espelho direito com a mão.
Eu me assusto. O cara quer brigar.
Eu nunca foi de briga, sempre fui pacificador, contemporizador. Tudo pode ser resolvido com uma boa conversa… O que fazer? Parar e tentar explicar que não quis fechá-lo? E se ele estiver armado, bêbado, drogado?
Não, nem tudo pode ser resolvido na conversa. Não naquele contexto. Piso no acelerador e tento me afastar.
Ele inicia uma perseguição. Em pânico, eu agora tenho a certeza: esse cara quer me matar.
O cérebro entra em modo sobrevivência e eu encontro uma saída. Vou dirigir até a delegacia de polícia mais próxima.
Veja, não existiam smartphones, nem google maps.
Mas eu sabia onde era a delegacia mais próxima e comecei a rumar naquela direção.
Havia um problema, porém. Para chegar lá, eu precisaria entrar à esquerda numa rua pequena, cruzando as três pistas da avenida que vinham na direção contrária. Impossível fazer isso em alta velocidade.
Quando me aproximo da rua da delegacia, reduzo a velocidade e o perseguidor, finalmente, consegue me fechar. Bloqueia o meu carro, desce com a mão direita nas costas, como se escondesse uma arma, e começa a gritar para que o saia do carro.
Eu estou em pânico. Tenho certeza, vou morrer…
Eu desço do carro com as mãos levantadas. O cara mantém uma distância segura, a mão continua nas costas, ele grita comigo, agressivo, raivoso:
— Por que você me fechou?
— Não queria te fechar, só tentei abrir passagem na esquerda…
Eu estou apavorado. Minha voz demonstra isso. Meu medo é combustível para a ira do canalha. Ele se inflama.
— Por que tentou fugir de mim?
— Por que não quero briga, cara. Desculpa aí se você achou que eu te fechei…
Ele se aproxima. Sabe que estou com medo, autoconfiança dele cresce… E aí, comete o erro.
Como nunca fui de briga, nunca gostei de violência, apanhei muito na escola.
Até entender que precisava aprender a me defender. Fui praticar Krav Maga. (Depois dá um Google aí, cê vai entender, mas agora continua aqui comigo.)
Quando ele estava próximo o suficiente, a mão ainda nas costas com a suposta arma, eu desferi o primeiro golpe. Um chute certeiro no joelho da perna de apoio.
Eu achava que ia morrer. Ou era aquilo, ou era o fim.
O cara sentiu o golpe, perdeu o equilíbrio. Seguiu-se uma sequência improvisada de ataques rápidos para neutralizá-lo: joelhada no saco, torção do corpo com cotovelada no nariz.
Ele começou a desabar, não teve tempo de nada. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, eu já tinha torcido o braço que ele mantinha atrás das costas e a pistola automática estava minha mão.
No ano anterior, como repórter, eu havia participado de uma atividade da Polícia Militar de São Paulo. Uma demonstração a jornalistas do treinamento de tiro dos soldados. O instrutor tinha dito uma frase que ficara na memória:
— Jamais aponte a arma para alguém, a menos que esteja disposto a atirar.
Naquele momento, eu tinha uma arma apontada para o arruaceiro que tinha me perseguido, me ameaçado…
Eu nunca tinha atirado em ninguém. Em toda a minha vida, só tinha disparado um revólver calibre 38 naquele evento da PM, no estande de tiro.
Um desastre total. Nenhuma das seis balas atingiu o alvo.
Mas a adrenalina estava a mil, o dedo, no gatilho, e o canalha estava bem próximo… As chances de errar eram pequenas.
Eu estendi o braço e mirei no peito do sujeito.
— Não atira! Pelo amor de Deus, eu sou policial…
— O quê?
O cara estava quase chorando, caído no chão, perto do pneu traseiro do meu carro. O nariz sangrava e ele tinha mijado nas calças.
— Sim, sou policial civil. Tenho família, um bebê de 11 meses…
— Por que você estava me perseguindo feito um maníaco?
— Porque eu achei que você tinha roubado esse carro.
— Tirou do c* essa ideia, né?
— Não, você está sem a placa traseira…
Como assim, sem placa? Dei dois passos em direção à traseira do carro, ainda com a pistola apontada para o sujeito.
A placa estava lá, mas dobrada para cima. Alinhada com o ressalto na tampa do porta-malas onde ficam as luzes de iluminação. De longe, à noite, parecia mesmo que o carro estava sem placa.
Abaixei a arma, a adrenalina começando a assentar.
— A porra do escovão…
— O quê?
— O escovão do lava-rápido. Eu passei o carro na ducha e o escovão puxou a placa pra cima. Ela está lá, tem até um fiapo do escovão pendurado na borda.
O cara relaxou, começou a chorar.
Puta merda. Quase matei um policial por causa de uma ducha grátis no posto de gasolina. Eu me aproximei do cara e estendi a mão para ajudá-lo a se levantar.
— Aqui, a sua arma. Acho que preciso te pedir desculpas.
— Eu devia te levar para a delegacia e te indiciar por agressão…
— Pois é, mas aí tu vai ter de aparecer na frente dos teus colegas desse jeito aí, ó…
Apontei para as calças molhadas, o nariz quebrado. Ele baixou os olhos, envergonhado. Colocou a pistola na cinta das calças, nas costas.
— Vai pra casa ficar com tua mulher e teu filho. Amanhã a cidade continuará cheia de bandido pra você prender.
Ele voltou para o carro dele, eu para o meu. Cada um seguiu o seu caminho.
E aí, gostou? Arrisca apontar o que é verdade e o que é ficção?
A parte do medo é real kkkk o restante não sei kkk mas foi muito bom de ler!