#6 Meu filho, meus sapatos e as incoerências da vida
Equilibrando-me entre o ideal e o possível na educação do meu adolescente, descubro que o Ferdi pai jamais teria aprovado certas escolhas feitas pelo Ferdi filho.
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Em poucos anos, eles não precisarão mais de mim.
A ideia começa a caminhar ao meu lado numa rua qualquer de Bangkok, capital da Tailândia.
Edifícios altos e modernos nos cercam. Viadutos e passarelas suspensas cruzam sobre as avenidas. Carros, motos, tuk-tuks enchem o ar com seus ruídos mecânicos. Tudo descolorido em diferentes tons de cinza.
Luca e Caio vão alguns metros à frente. Eu os observo de longe.
Caio mexendo os braços, meio que dançando, ou cantando em silêncio.
Tão Caio, isso.
Luca mais distante, mãos enfiadas nos bolsos. Olhando sem ver, como se o pensamento estivesse longe.
Tão Ferdinando, isso…
Não consigo evitar. É motivo de ansiedade, até. Vejo em Luca, claramente, o Ferdi de 14 anos. Para o bem e o para o mal.
A ideia, agora, está de braços dados comigo. Não me abandonará tão cedo.
Em pouquíssimo tempo, Luca não precisará mais de mim.
Luca fez 14 anos em Bali. Está mais alto do que eu.
Pensa saber tudo sobre a vida, sobre como funciona o mundo. O que ele pensa é o certo, claro. É um jovem cheio de opiniões e argumentos bem construídos. Não precisa que ninguém lhe ensine nada. Ponto.
Ah, se houvesse uma forma de lhe ensinar apenas parte do que aprendi…
Não há. Eu sei. A gente continua tentando, mas é em vão.
Também recebi conselhos dos mais velhos, tampouco fizeram ninho em minhas ideias na adolescência. Apenas anos depois fui entender, nos tombos do caminho, o que tentavam me dizer.
Cair faz parte da caminhada. Não há atalho seguro para evitar os tombos. Talvez, nem seja saudável evitá-los.
Diante do espelho, Luca ajusta a gravata. Eu o ensino a dar o nó. Ele coloca a camisa para dentro da calça social. Veste o paletó de linho.
Olha o reflexo no espelho, ajeita a franja. Claramente, gosta do que vê.
Nunca encontrou um espelho de que não gostasse, esse menino.
Estamos de volta a Bali. Ele vai atuar como delegado do Japão nos dois dias de encontro do Model United Nations. Uma disciplina optativa na escola.
Em simulações de assembléias gerais, jovens do mundo todo debatem temas atuais. O programa, concebido pela ONU, ensina os valores da organização.
Luca pensa em estudar Direito. Por isso, mergulha com afinco na optativa. É uma chance de exercitar a argumentação. É um estudante aplicado.
Quase pronto para sair, o sapato se torna uma questão. Obviamente, ele não trouxe sapatos para Bali. Só chinelos de dedo e tênis!
Os sapatos do papai servem em você? Ele experimenta. Servem perfeitamente. Está resolvido o problema! Resolvido?
Não tão cedo, meu filho. Não queira caminhar nos meus sapatos!
Assim como Luca, eu queria ser mais velho do que era aos 14 anos de idade.
Eu ainda tinha a pele lisinha quando comecei a importunar meu pai. Queria me barbear. Raspar um bigodinho incipiente que se formava sobre os lábios.
Meu pai tentava me dissuadir. Chegaria o tempo em que teria de me barbear todos os dias. Não havia por que se adiantar…
Ele estava certo, mas eu não ouvia, claro. Só fui entender anos mais tarde como é chato esse negócio de barba.
Luca? Raspou o bigode ainda outro dia…
Não era questão de desejo. Eu me sentia mais velho.
Acho que eu fui o jovem mais velho que conheci. Talvez viesse no pacote do nome. Nunca conheci outro Ferdinando que tivesse menos de 70 anos.
Desde a adolescência, eu me sentia pronto para assumir responsabilidades, para preencher expectativas alheias.
O custo emocional disso? Nem passava pela minha cabeça.
Eu lia muito, adorava filmes – crime, ação, guerras. Fazia amigos com facilidade, mas era tímido com as meninas.
Um problemão. Eu tentava disfarçar, fingia ser extrovertido… Mas só fui beijar na boca pela primeira vez aos 15 anos.
Meus pais não me entendiam, claro. Qual pai, mãe entende filho adolescente?
Eu queria sair com meus amigos, chegar em casa a hora que fosse…
Por que meus pais não entendiam? Nada de ruim ia me acontecer. Eu era jovem, tinha um futuro inteiro pela frente. Pra que se preocupar?
Em Bali, Luca começou a pedir para aprender a pilotar a scooter. Muito cedo. A idade para habilitação na Indonésia é 17 anos.
Ele não ouve. Quer aprender. Andar só na rua de casa, vai?
Alguns amigos já conduzem suas motinhos pela ilha. É uma das grandes clivagens na escola.
As famílias se dividem entre as que deixam os filhos pilotarem a partir dos 14 anos e as que se apegam à lei.
Não vai acontecer nada, não tem perigo. É o mantra dos pais permissivos.
Até o dia em que acontecer e aí, só restará se lamentar. Devolvem os restritivos.
Estou com o segundo grupo. Luca não vai pilotar scooter. Nem vai andar na garupa de amigos menores de idade. Esse ponto é inegociável.
Lembro-me de atormentar meu pai para que ele me ensinasse a dirigir. Eu tinha 14, talvez 15 anos? Não muito mais que isso.
Fim de semana passado. Estamos em Pererenan, praia de Bali que está se desenvolvendo agora. Muitos campos de arroz, ainda; muitas obras de casas, de vilas, pequenos comércios. Um cenário em transformação.
Luca quer sair com os amigos. Talvez dormir na casa de um deles em Canggu? É outra praia. Desenvolveu-se há uns 5 anos. Muita pousadas, bares, casas norturnas, turistas de passagem – os mais selvagens e predadores.
Eu sofro em silêncio, dividido. Minha vontade é dizer não, ainda é cedo.
Mas talvez não seja. Com a idade dele, comecei a passar noites fora de casa.
O certo é orientar. Autonomia com responsabilidade. Vamos nessa.
Não pode beber, não preciso nem dizer isso, certo? Certo.
Eu não sei quantos anos tinha quando comecei a beber. Com certeza absoluta, porém, eu era menor de 18 anos…
Não pode andar na garupa da scooter dos amigos, certo? Isso está claro? Está.
Na scooter do Gojek, sempre de capacete. Combinado? Eita, combinado, papi. Quando foi que ele andou sem capacete? Scooter sem capacete, jamais! Tá.
Aos 16 anos, um dos meus melhores amigos pegava o carro do pai. Rodávamos pela cidade à noite. Não havia radares . Às vezes, na Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, ele testava a velocidade máxima do motor 2.0 do Monza…
Quem vai nessa balada? Não sabe. O que vão fazer? Não sabe.
Vão só ficar lá, na casa de um deles, de boa. Os pais dele estarão lá? Não sabe. Como não sabe? Silêncio.
Não sabe, não sabe… Conheço essas evasivas. Só pode estar mentindo…
Bom, então ele vai indo, valeu? Vai encontrar um amigo.
Aonde? No mercadinho, ali perto mesmo. Belê? Qual amigo?
Hum, é um amigo que tem scooter. Em tese, a mãe só o deixa andar perto de casa e as praias são longe demais, mas…
E por que no mercadinho? De lá já vai pegar o Gojek. Beleza?
O amigo está vindo como? De Gojek. Por que não vem aqui? Ih, já combinei… Beleza? Beleza.
Ele sai.
Eu me lembro que preciso comprar um-não-sei-quê. Saio alguns minutos depois.
Chego ao mercadinho. O que encontro?
Luca montado na garupa da scooter do amigo. Sem capacete.
Ele me vê, fica todo sem graça, desce da moto. O amigo acelera e se pica.
Deve estar se borrando com medo de eu contar para a mãe dele que o encontrei de scooter do outro lado da ilha.
O passeio gorou. Não preciso nem argumentar. Pego na mentira, Luca não insiste. Volta para casa. Eu compro o não-sei-quê e volto também.
No caminho, tento decidir: qual será minha posição em relação a tudo isso?
Existe um abismo entre o certo e as coisas que fiz na adolescência.
Eu menti para meus pais? Algumas vezes. Cruzei linhas que não poderia ter cruzado? Sim, várias. Não todas, veja bem, não fui dos piores…
Eu sabia que meus pais não aprovariam certos comportamentos? Sabia. Ainda assim… Fiz tudo o que julguei apropriado. Evitei só o que achava arriscado.
Não me arrependo de quase nada. Para ser honesto, porém, preciso admitir.
O Ferdi pai não aprovaria várias das escolhas feitas pelo Ferdi filho.
Volto à casa equilibrando-me no cabo de aço. Lá embaixo, o abismo enorme entre o mundo ideal e a vida real. Tento decidir.
Qual será minha postura? Como reagir em relação à mentira em que flagrei meu filho? O que você, que me lê, faria no meu lugar?
A esta altura, as decisões já foram tomadas. Vou compartilhá-las no próximo episódio do podcast O Segredo. Por agora, quero ler opiniões e sentimentos de outros pais, outras mães, de outros adolescentes, nos comentários.
Follow Up Zero
🌧️ A obsessão pela forma, aparentemente, criou ruídos na carta da semana passada. Empenhado em não alongar o texto, acabei causando confusão entre personagens. Esclareço: Dona Ofélia ensinava Redação. Era ótima professora, me estimulava a escrever. Nunca castraria meu sonho. O nome da outra, a que lecionava Orientação Vocacional, por enquanto, guardo para mim. Tenho já a ideia de uma carta dedicada a ela.
🌞 Esta semana experimentei dois novos recursos do Substack: criei o podcast “O Segredo”, com uma leitura crítica da carta da semana passada. Quem ouviu e se manifestou, aparentemente, gostou. Teremos episódio novo na próxima terça-feira.
🌞 O segundo recurso foi o chat com assinantes. Eu ainda não sei bem para que serve, mas usei para colher votos para a nova seção que, ao final, decidi chamar de EscritaViva. Sugestão da minha leitora e apoiadora de primeira hora, minha irmã Nancy Casagrande. Já está no ar!
🌞 A carta sobre os passarinhos ganhou momento depois que André Timm, de O Escritor Amador, gentilmente a compartilhou nas notas dele. Eternamente grato ao Andre e contente que a carta tenha feito sentido para tanta gente. Chegou por aqui depois dessa publicação? Vale conferir:
Tá tudo certo, Ferdi. Luca testa os limites, vai além, volta, tentará de novo. Como quando começou a andar. E sabe-se lá quantas histórias ele já guarda que vc nem imagina? Natural e saudável. Como correr na Marginal de Monza. Hoje vc tem outro papel. Não há incoerência. E tem que cobrar, tem que falar, avisar, fazer sermão, dizer que ama, fazer cara feia, dizer tudo nos momentos de silêncio. Vc não pode vacilar. Deve subir no palco com o texto pronto, seguro. Essa gente nova não perdoa. E assim insistir e insistir no cuidado com os passarinhos. Até o dia em que o ninho será poucos para eles. E tá tudo bem. 😭
A grande aventura de ter filhos. E pode apostar dá mais adrenalina que andar de scooter hahaha. Vou ouvir a continuação no podcast