[Mundo Afora #2] Ninguém olha para Moçambique?
Ecos da primeira viagem desnorteada ressoam 19 anos depois.
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Olá,
Na carta de lançamento da newsletter do DESNORTEANDO, lembrei minha primeira viagem desnorteada à África. E não é que os ecos daquela viagem vieram ressoar aqui nas praias de Bali?
Fiquei sabendo hoje. Moçambique, que visitei em setembro de 2005, está em convulsão. No limite de um golpe de Estado, e talvez uma nova guerra civil. Aparentemente, porém, ninguém na imprensa brasileira acordou para o fato.
Fui buscar nos meus escritos de 2005 memórias que ajudam a entender as convulsões atuais. Reproduzo, abaixo, os trechos mais relevantes.
Boa leitura a todos!
Omar não sorri no país dos sorrisos banguelas
Minha peregrinação moçambicana começou pela Ilha de Moçambique. Veio de lá o primeiro relato, enviado na Baciada de Notícias, em 8 de setembro de 2005. Era um relato longo. Destaquei abaixo os trechos que ajudam a entender o contexto atual:
(…)
Em Naguema, uma vila pendurada numa beira de estrada entre a Ilha de Moçambique e Monapo, o professor primário Francisco Piripo me explicou a origem do nome do país. Quando aportou nesta ilha pela primeira vez, Vasco da Gama deu de cara com um chefe local chamado Mussa al Bique. Muito antes dos patrícios, os árabes já aqui estavam, desde o século 9. E ficou batizada a Ilha de Mussa al Bique, que com o tempo se transformou em Moçambique.
A ilha foi também palco da briga que deixou Camões caolho. O maior poeta português, que refez a viagem de Vasco da Gama para escrever seu grande épico, Os Lusíadas, descreveu o local como “uma bela mulher deitada ao sol no mar de cores”.Em meio a toda essa beleza, encontrei marcas do triste passado recente do país. Na praia onde meninos se divertiam, um me chamou atenção pelo semblante fechado.
Aos dois anos de idade, Omar passeava com o pai por um campo quando sua vida subiu ao céu numa nuvem de poeira, terra e estilhaços. De volta ao chão, caiu ao lado do corpo estralhaçado do pai. A mina terrestre, herança da guerra civil, o deixou órfão e surdo. Como não havia aprendido a falar, Omar ficou também mudo. Cenho sempre sério, Omar não sorri no país dos sorrisos banguelas.
Frelimo, Renamo e a guerra civil
A mina terrestre era resquício da longa guerra civil que assolou Moçambique entre 1975 e 1992. De um lado, a Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo; de outro, a Renovação Nacional Moçambicana, Renamo. A configuração dessa guerra foi contada no relato de 17 de setembro de 2005, enviado da cidade da Beira:
(…)
A guerra de independência começou em 1964. Eduardo Mondlane, um dos raros intelectuais moçambicanos na época, voltou dos Estados Unidos após concluir o mestrado e reuniu os vários movimentos espontâneos de independência na Frente de Libertação de Moçambique. Mondlane era alinhado aos norte-americanos. Recebia apoio ideológico, mas não armas, porque os EUA tinha Portugal como aliado.
Em 1969, uma carta-bomba explodiu as ambições de Mondlane. A história oficial atribui aos portugeses o assassinato. Samora Machel, até então comandante das tropas, aproveitou a chance para assumir o comando da Frelimo. Mais pragmático, Machel foi bater ao Kremlin em busca das armas que a Casa Branca lhe negava.
Seis anos depois, com os cravos socialistas no poder, Portugal libertou as colônias. Moçambique virou comunista e Machel deu 24 horas para que os brancos partissem com apenas 20 kg de bagagem. Revoltados, portugueses refugiados na África do Sul começaram a financiar a Renamo, uma facção suicida sem projeto de poder que durante 16 anos explodiu de tudo por aqui. O apoio bélico vinha dos Estados Unidos, via África do Sul.
Em 1986, Samora Machel morreu num acidente de helicóptero e então o processo de paz foi iniciado. A guerra acabou em 1992 e, desde então, os moçambicanos tiveram três eleições vencidas sempre pela Frelimo.
A eleição de 2024 e o novo Mondlane
Depois da paz, Frelimo e Renamo se tornaram os principais partidos moçambicanos. A Frelimo sempre no poder, a Renamo na oposição. Em 2005, três eleições haviam acontecido. De lá para cá foram mais quatro, a última no dia 9 de outubro.
A Frelimo sempre venceu sob acusações de fraudes eleitorais. Desta vez, porém, o candidato derrotado se recusa a aceitar o resultado.
Venâncio Mondlane, do partido Podemos – apesar do mesmo sobrenome, ele não tem parentesco com o herói da independência –, convocou manifestações já durante a divulgação de resultados preliminares. O clima ficou conturbado. No dia 18, foram assassinados a tiros numa emboscada o advogado de Mondlane, Elvino Dias, e o presidente do Podemos, Paulo Guambe.
O candidato, então, se refugiou em local ignorado e passou a convocar protestos e greve geral pelas redes sociais. Os protestos aumentaram depois da divulgação do resultado oficial, em 24 de outubro, que atribuiu a vitória ao candidato da Frelimo, Daniel Chapo, com 70,67% dos votos.
A situação em Maputo neste momento é tensa. A greve geral começou ontem (31/10). O governo chegou a bloquear sinais de telefonia móvel numa tentativa de frustrar a comunicação entre os manifestantes pelas redes sociais. Conhecidos meus que vivem na capital moçambicana relatam que marchas populares se deslocam de todas as províncias. O objetivo é tomar as ruas da capital para forçar a queda da Frelimo.
As forças de segurança têm tentado conter os manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo e uso de munição real. Organizações Não-Governamentais locais contabilizam em 11 o número de mortos nos protestos do dia 24. Mais de 500 manifestantes foram presos.
A Anístia Internacional endossa os dados e divulgou o vídeo abaixo nas redes sociais.
Venâncio Mondlane, líder dos protestos, é um político conservador e populista Confira o vídeo gravado por ele alguns dias antes das eleições em mensagem aos brasileiros:
A data da grande tragédia anunciada é 7 de novembro, quando as marchas do interior devem se encontrar em Maputo. Mondlane lançou apelo às forças de segurança para que se unam aos protestos. Ao todo, são esperados 4 milhões de manifestantes, que serão recebidos por um efetivo de cerca de 4 mil militares.
O Brasil, as nações européias e até mesmo as Nações Unidas estão em completo silêncio até aqui. Algum dos amigos jornalistas se interessa pela pauta?
Realmente, não sabia que precisava tanto da sua newsletter, estou impactada!