#10 Quando menos é mais
Memórias da infância - a real e a tardia - se combinam para desafiar a lógica.
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]Era aniversário de Luca, 3 anos. O primeiro depois da mudança para Nova York. Os avós viajaram para festejar conosco.
O presente deles para o neto foi uma maleta azul. O fundo era escuro, a tampa, clara. O tom dos fechos amarelos puxava para o laranja.
Lá dentro, 146 pecinhas de Lego com potencial para se transformarem em diferentes carros, barcos, postos de gasolina, praças, oficinas… O livrinho propunha cinco cenários, mas a imaginação era ilimitada.
Os olhinhos brilharam quando Luca abriu o pacote. Os dele e os meus.
Não existia Lego no Brasil quando eu era criança. O brinquedo era fabricado no exterior e a economia brasileira era fechada nos anos 1970.
O brinquedo mais próximo disponível era o Playmobil. Mas era caro. Eu não tinha em casa.
Um vizinho, porém, tinha alguns sets. De vez em quando, ele chamava a molecada da rua para brincar na casa dele.
Depois da abertura da economia, o Lego chegou ao Brasil. Eu já era adulto, não tinha filhos. Sem desculpa, portanto, para investir num brinquedo caro.
Nos Estados Unidos, porém, Lego era barato e abundante. Tinha tudo o que você poderia desejar, a preços que eu podia pagar.
À maleta azul seguiu-se um Lego City Starter Set, com um furgão de bombeiro, uma ambulância e uma motocicleta de polícia.
Logo depois vieram dois baldes de peças avulsas. Para libertar a criatividade. Um vermelho, com 200 peças; um amarelo, com cerca de 600 peças.
Os conjuntos de Playmobil do meu vizinho de infância eram sucesso absoluto.
Só tinha um problema.
O garoto era bem chatinho. Tipo o dono da bola, do conto da Ruth Rocha?
Quando li aquele livro, fiquei pensando. A Rute Rocha morava no bairro? Teria se inspirado no vizinho para criar o Caloca?
Pai, adulto e responsável, lutando para botar de pé um livro, o primeiro que eu escrevia, comecei a passar horas das minhas tardes brincando de Lego.
Era questão de segurança. O brinquedo não era indicado para menores de 3 anos. Caio tinha 1 ano e meio.
E se ele enfiasse uma daquelas pecinhas na boca? Não podia deixá-lo sozinho.
Era só por isso…


Rute Rocha não morava na vizinhança. Ela só usava uma situação universal na infância para fazer literatura.
O vizinho, provavelmente, nunca leu o conto. Nem precisava, para se comportar exatamente como o Caloca do livro.
Bastava alguém dizer um não e o moleque emburrava. Guardava o brinquedo e mandava a gente embora, morrendo de vontade de brincar mais.
Nas tardes em que eu deveria estar escrevendo meu livro, eu superava aquele trauma da infância. Eu brincava de Lego até não poder mais.
Nós construíamos estádios de futebol, estações para os bombeiros e policiais, casas, carros de corrida, cadeias… Sim, tinha um ladrão entre os bonequinhos do Starter Set.
Um espetáculo! Não havia limites para a criatividade.
Para incentivar os meninos, comecei a inventar. Corujas, gatos, cães… Um Tiranossauro Rex que movia a cabeça e o rabo!
O avião, talvez, tenha sido o auge da minha “carreira” como Lego Creator.






Brincando de Lego com Luca e Caio, eu matava a vontade reprimida na infância. Resolvia o trauma causado pelos humores do Caloca do meu bairro.
O sucesso do brinquedo era evidente. A partir de certo ponto, todos os presentes da família passaram a chegar pela Amazon, na forma de Lego. Até eu ganhei dos meninos, no meu aniversário, um trailer puxado por um jipe.
Começamos a colecionar coisas grandes.
Estação de bombeiros, aeroporto, navio de caçadores de tesouros oceânicos, conjunto de exploradores de vulcões…
Sem falar nos sets avulsos complementando as coleções. Quanto mais Lego a gente tinha, mais Lego a gente queria.
Até perdermos a mão.
Os americanos têm um ditado curto para situações em que você obtém melhores resultados se evitar excessos: Less is more.
Na volta ao Brasil, nosso acervo era tão numeroso que brincar de Lego se tornou impraticável. Nós até tentávamos, mas não nos divertíamos mais.
Demorávamos tanto procurando peças na imensidão de bloquinhos que não sobrava tempo para brincar. Cansávamos antes de terminar a montagem.
A frustração ocupou o lugar que havia sido da diversão.
O tempo passou, os meninos cresceram, eu cresci. (Finalmente!)
Antes da partida para Bali, os Legos foram acondicionados em caixas nos maleiros da casa dos avós.
Deixaram saudades do tempo em que tínhamos menos peças, mas nos divertíamos muito mais em tardes inteiras de pura fantasia.
Esta é mais uma carta inspirada numa leitura do Substack.
Neste caso, no texto #48 publicado pela escritora
no Nevoeiro, onde ela aborda o reencontro com brinquedos da infância.Escritora premiada, Carol Bensimon é autora de Diorama, Todos nós adorávamos caubóis, O clube dos jardineiros de fumaça, Pó de parede, entre outros. Os links nos títulos levam para os respectivos livros na Amazon BR.
Além da inspiração no Nevoeiro, esta carta conversa, de certa forma, com a crônica mais recente do
em Aqui jaz um cronista.O paradoxo de Lego (menos Legos = menos tempo montando = mais diversão) confirma ou refuta o Paradoxo do Queijo Suíço (mais queijo suíço = mais buracos = menos queijo suíço) elaborado por ele?
Tiago também brilha na literatura com O que pesa no norte, Demônios domésticos e o mais recente A índole dos cactos, entre outros.
Follow Up Zero
🌩 Eu já desconfiava havia algum tempo. Na semana passada, comprovei: ninguém lê esta seção. O link para a primeira crônica ficcional, que publiquei exclusivamente aqui, só recebeu dois clicks. Diante da constatação, este é o último follow up zero.
✍🏼Publiquei esta semana, na seção DESENCONTROS, mais uma crônica. Desta vez, um exercício de autoficção. Chama-se Mal-entendido e marca o início da colaboração com a editora
. Você se arrisca a separar ficção de realidade no texto? Leia e depois me conte.
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Em 1967 Caetano Veloso já perguntava: quem lê tanta notícia?
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No banco do jardim ela tomava sol. Bengala ao lado, rosário na mão, ela não rezava naquele instante. Estava ocupada em recompensar minha companhia com histórias sobre a infância na Serra da Estrela.
Aqui em casa temos uma situação similar. Um excesso de Legos, ninguém brinca mais com eles, mas os donos não conseguem desapegar. Talvez por conta dessa memória afetiva tão poderosa que esse brinquedo constrói.
Honrado pela citação! Eu pequeno sempre quis ter lego, mas minha mãe preferia me mimar com os bonecos do He-Man. rs