[Mundo Afora #12] Vale a pena?
Sobre montanhas e o salto de fé - ou a decisão de recomeçar quase do zero aos 54 anos.
Na escuridão da madrugada, centenas de pontinhos formam a fila sinuosa de luzes. São lanternas. Amarradas às cabeças de turistas, sobem o Monte Batur, um dos vulcões ativos de Bali.
Estou no início da trilha. As pedras soltas rolam sob meus pés. Prevejo dificuldades. A fila de luzes não deixa dúvidas. É grande a inclinação que tenho pela frente.
Trabalho árduo nesse momento, aos 54 anos de vida.
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— Você vai recomeçar do zero nessa idade?
Variações da mesma pergunta pipocaram depois do anúncio.
Em alguns ouvidos, a aprovação pela Universidade de Coimbra da minha candidatura ao mestrado em Escrita Criativa não chegou exatamente como boa nova.
— Você tem um nome no Jornalismo. Precisa disso?
O esforço é intenso. Fôlego não falta, porque a subida é lenta. Os músculos das pernas, porém, sentem. Coxas e panturrilhas gritam.
Um terço do caminho ficou para trás? Talvez mais?
Não sei precisar, na escuridão da madrugada. O cume ainda não se destaca contra o céu. A fila de luzes, porém, indica o caminho. Falta muito chão.
Uma caminhada nunca é desperdiçada. Não se joga fora uma vida dedicada à escrita, ainda que jornalística, ainda que objetiva.
De alguma forma, os anos nas redações haverão de me servir.
Dito isto, a resposta à primeira pergunta é: sim. Recomeço quase do zero em busca de uma nova habilidade, a escrita literária.
A capacidade de construir histórias de ficção com camadas, subtexto, ironia, provocação. Enredos que não existem fora da minha imaginação.
— Mas você vai ficar longe dos filhos?
Luca, o primogênito, não quis subir o monte Batur. Fez a viagem com a escola no ano passado. Prefiriu ficar em casa.
Em agosto ele completa 15 anos. Já rejeita alguns programas em família. Especialmente os que envolvem templos, elefantes e trilhas na natureza.
Caio, o caçula, disparou na frente. É cada vez mais comum, não precisar que eu lhe mostre o caminho. Avisou que subiria no próprio ritmo. Nos encontraremos no topo.
Quem me lê desde as primeiras cartas sabe. Eu sempre quis escrever.
Foi o chamado que me levou ao Jornalismo. Um chamado jamais atendido plenamente.
Sabe também que, nos anos seguintes à publicação do meu premiado livro de não-ficção, eu me dediquei à escrita de uma novela de espionagem.
Foi uma experiência árdua. Cheia de longas pausas e recomeços.
Na pausa para descansar, o guia tenta me convencer a pagar uma motocicleta até o topo.
Eu recuso. A caminhada é minha, não vou desistir.
Ele explica. O objetivo é ver a alvorada no cume. No ritmo em que caminho, ele não sabe se conseguiremos.
Eu olho o relógio. Sim, temos tempo. Ele não precisa se preocupar.
Tomo um gole de água, retomo a subida.
Por que tanta gente, ainda que cheia das melhores intenções, tenta nos tirar do caminho?
A pressa na vida termina quando a conta que importa mais é a dos anos que nos restam, não dos que ficaram para trás.
Em Bali completei 54. Quantos ainda tenho pela frente? Vinte? Com certeza. Trinta? Com alguma sorte. Bastam. É praticamente o mesmo tanto que vivi como jornalista.
Vou usá-los para libertar as histórias presas na imaginação. Já comecei, com a novela de espionagem. A experiência me mostrou, porém, que preciso de novos conhecimentos. Novas chaves para destrancar os cadeados.
É isso que vou buscar em Coimbra. Chaves para os cadeados que amarram as histórias que quero contar.
A inclinação aumenta. O esforço me recorda um momento específico vivido 23 anos atrás. O segundo dia do Caminho Inca para Machu Pichu.
Iniciamos a caminhada sob mata densa, a 2.800 metros de altitude. Uma hora depois, a cobertura vegetal terminou no início de uma longa trilha. Serpenteava a encosta dourada da montanha até a passagem no pico, a 4.200 metros.
Aos 31 anos, físico condicionado em academia, precisei de 5 horas para vencer a distância, a inclinação e o ar rarefeito.
Em algum momento, achei que não conseguiria. O cansaço dominou a mente, eu só pensava em parar.
Um suíço passava por ali. Percebeu que eu estava esgotado, se ofereceu para levar minha mochila. Adiante, uma brasileira encostou ao meu lado. Tinha fôlego de sobra, mas reduziu o ritmo e caminhou comigo até o final.
Duas pessoas que eu jamais havia visto, jamais voltei a ver.
Quando cheguei ao topo, no Passo da Mulher Morta, chorei abraçado aos dois desconhecidos, dois anjos da trilha.
Nem todo mundo, afinal, tenta te tirar do caminho.
— De que forma o mestrado acrescentará à trajetória profissional?
Para escrever, de fato, eu não preciso de um título de mestre. A trajetória profissional no Jornalismo, porém, já chegou ao topo. E depois do cume, o que nos resta?
Coimbra é um novo cume que acrescento à essa história. Uma nova alvorada.
O céu clareia, enxergo o recorte do topo no horizonte. Falta pouco. Vejo silhuetas de turistas ao redor da cratera.
Centenas de pessoas escalam a encosta do Batur para assistir o nascer do sol. Uma procissão a se repetir diariamente.
Tantos olhares voltados na mesma direção lembram-me outra montanha, na viagem à África que volta e meia cito por aqui.
Escrevi sobre ela no diário, na época. Jamais publiquei. Título e texto são meio bregas, admito. Não posso, porém, alterar quem fui há 20 anos. Por isso reproduzo, apenas. Sem filtros.
A montanha da vida
No Cabo da Boa Esperança, subimos uma pequena colina para apreciar a vista. A bateria da câmera tinha acabado e isso me chateava. Não podia fazer fotos. Resolvi descansar e sentei numa pedra. Ali, com vento frio soprando no rosto, o Atlântico gritando e colorindo o cenário lá embaixo, levantei a cabeça e vi uma montanha que descrevia a linha da vida.
Todo mundo sobe àquele lugar para olhar o mar e me vi enxergando o curso da vida num monte do lado oposto, para onde ninguém olha.
No contorno, enxerguei os altos e baixos da nossa existência. As ascensões quando estamos crescendo e aprendendo a ser gente, os planos das fases de estabilidade que precedem novas subidas de crescimento até chegar ao topo, de onde a linha começa a descer, com alguns trechos de estabilidade antes de novos declínios. Até a base. O retorno ao início. O fim.
Naquele desenho vislumbrei o ponto em que estou. Um ponto de estabilidade que será seguido por nova ascensão. Curta, mas um novo período de crescimento.
Perguntei ao guia se a montanha tinha nome. Nenhum em especial. Agora tem. Pra mim, é a Montanha da Vida. Bem atrás do Cabo da Boa Esperança.
— Vale a pena, todo esse movimento de se mudar para Portugal?
Diante da pergunta, como não lembrar do verso, um dos mais famosos do poeta recluso? O português tímido que, por décadas, criou em segredo mundos e existências poéticas, mas só publicou seu primeiro livro em 1934, um ano antes de morrer. Está lá, nesse livro, o poema.
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Fernando Pessoa)
Uma faixa laranja se forma no horizonte. Estou no topo do Batur.
Uma rápida insegurança me assalta. Tanta gente ao redor, onde estará Caio? Perdeu-se no caminho? Grito o nome. Uma vez, duas. O filho aparece e me abraça.
Não nos perdemos, apesar da distância.
Sentados na borda da cratera, contemplamos o cenário. A cobertura de nuvens sobre o lago Batur lá embaixo; o Monte Agung à direita, maior vulcão de Bali; o mar indonésio na linha do horizonte, a separar Bali de Lombok, onde domina o Monte Rinjani, outro vulcão.
O laranja virando amarelo, misturando-se para iluminar o azul profundo do céu que se transforma a cada segundo.
A 1.717 metros de altitude, um novo amanhã vai começar.
Inspiração
Não veio de um texto específico, mas da triologia do olhar.
Publicada em maio pela
no Sofá da Surina, foi a minha inspiração na escrita desta edição . Se puder, leia:Surina é escritora e artista plástica. Vive em Portugal. É autora de dois livros: 108 e O Mundo sem Anéis.
Prêmio Informal de Microcontos no Substack
Lancei a ideia na semana que passou e, até o fechamento desta carta, tínhamos 15 inscritos. Vamos votar nos melhores? Basta clicar na imagem abaixo, ler os microcontos nos comentários (nehum tem mais de 250 caracteres) e dar like nos preferidos:
Não sei se já disse, mas parabéns pelo mestrado! Muito bom recomeçar em qualquer idade!
As coisas ganham uma perspectiva diferente na montanha, né? A montanha sempre me traz clareza.
Boa sorte nessa nova fase. Se a gente não for atrás de realizar os nossos desejos, ninguém mais vai!