[Mundo Afora #5] E se você só tivesse mais 362 dias pela frente?
Resoluções de Ano Novo estão fadadas ao fracasso por sabermos que é possível deixá-las para depois. E se não fosse? O que você não poderia deixar de fazer no último ano da sua vida?

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Cinza claro, ocre. Dourado, verde-claro-escuro, cinza queimado. Azul.
A mesma palheta de cores se repete pelo para-brisa.
Grudados ao asfalto e ao acostamento de terra, os olhos percebem sem ver a relva rasteira sob os emaranhandos de arbustos em folha e de galhos ressequidos. Tudo sob o céu que muda de tons, a depender da hora do dia.
Assim é o outback australiano. Monótono, apesar da variedade de cores.
De olho na estrada, a cabeça viaja em busca do tema da primeira carta do DESNORTEANDO em 2025.
Vi no Substack muitas resoluções de ano novo. Nunca funcionaram para mim.
Sim, elas preenchem a função de refletir sobre o futuro, traçar planos e objetivos. Como o futuro parece longo, porém, os desejos listados no calor do réveillon sempre podem ficar para depois.
Desta vez, não fiz retrospectiva do ano que termina, nem promessas para o que começa.
Não quero comemorar o pouco que realizei, nem lamentar o muito que teria de prometer novamente para os próximos 365 dias.

Quilômetros e mais quilômetros se acumulam no hodômetro. O asfalto reflete o céu e a paisagem parece dissolver no horizonte. É o calor.
O mesmo sol que realça as cores da monotonia arde a paisagem. No meio do dia, o termômetro mostra a temperatura lá fora: 44ºC.
A sensação térmica, então, é pior.
Sinto o bafo quente como uma bofetada nas paradas em que desço do carro para apreciar a vista, um ponto turístico, esticar as pernas.
Um calor seco, agressivo. Poucos minutos do lado de fora bastam para que a água na garrafa de metal comece a esquentar.
A única coisa que sei sobre 2025, por enquanto: em algum momento de julho aterrissarei no Brasil.
Passagens já estão compradas de Bali até Milão. Falta fechar a outra metade do caminho.
Posso imaginar os reencontros. Família, amigos, Brasil. De passagem ou para ficar?
Não sei. Nada sei sobre o futuro, neste ou em qualquer outro ano.

Além do bafo quente, incomodam muito as moscas.
Milhares delas voam ao redor da minha cabeça. Tentam entrar pelo nariz, boca e orelhas. Pelos olhos. Um inferno de moscas.
Elas me atacam em mais uma parada de descanso. Estico as pernas para reativar a circulação. Caminho até um lookout que descortina o encontro do Oceano Índico com penhascos rochosos.
Lá embaixo, o mar turquesa investe em seu eterno ataque às rochas avermelhadas. Estico os olhos para reativar a imaginação.
Dura pouco. Quem consegue apreciar vista com tantas moscas ao redor?
O problema da incerteza no horizonte é a sensação de deriva. O tempo soprando as velas… O barco sem direção…
Como fazer uma lista de resoluções sem assumir o leme da vida? Como assumir o leme com uma bússola sem norte?
Numa lista dessas caberia o mundo. E mesmo com o mundo todinho lá dentro, ainda assim, seria a mais vazia de todas as listas.
Sem propósito, sem rumo.
Uma lista desnorteada. Como parece ser esta carta.

Não só de monotonia, calor e moscas é feito o outback australiano. A morte também corre solta por essas estradas.
Anuncia presença com corvos que parecem materializar no aslfato quando o carro se aproxima do horizonte líquido.
São sempre dois, no máximo três. Bicam até o último minuto, no asfalto, os restos de um animal morto. Só voam quando estou prestes a atropelá-los.
Cruzo restos de cobras, lagartos… Os bichos pequenos estão sempre no meio do asfalto.
Cruzo carcaças de cangurus em diferentes estados de decomposição. Bichos grandes estão, quase sempre, no acostamento.
Um deles me impressiona mais. Parece ter morrido há pouco tempo.
O corpo ainda inteiro incha sob o sol. As patas abertas, enrijecidas, apontam para o céu. Os olhos vidrados, voltados para a pista onde encontrou a morte, parecem olhar para mim quando cruzo por ele a 110 quilômetros por hora.
O que me impede de pensar em planos e objetivos para 2025 é a eterna dúvida: qual o sentido disso tudo?
Da vida, não das listas.
As listas eu entendo. Somos nós buscando conforto na ilusão de estarmos no comando do que, na verdade, não tem controle.
Já a vida… Por que estamos aqui? O que deixaremos, quando tudo acabar?
Este ano assisti, a certa distância, o fim de duas pessoas próximas.
Uma delas levou uma vida aparentemente vazia. Apegada ao dinheiro, acumulou fortuna, mas não cuidou das relações pessoais.
Teve um fim triste. Desconectada mentalmente da realidade, incapaz de cuidar de si mesma nos últimos meses.
Outra levou uma vida plena de propósito. Dedicada a despertar em milhares de crianças e jovens o mesmo amor e respeito que sentia pela natureza.
Teve um fim triste. Desconectada fisicamente da natureza que tanto amava por causa do Parkinson. Incapaz de cuidar de si mesma nos meses finais.
É sempre triste, o fim? Independentemente do caminho trilhado?

O sol se pôs no outback. O hodômetro acumula quase 700 quilômetros. Falta pouco para o próximo hotel.
A vontade de chegar é grande, a estrada está vazia. Piso no acelerador.
Um animal pequeno surge na beira da pista. Um coelho. Ele me vê, se demora um segundo, e foge de volta para a segurança do acostamento.
Entendo o sinal. Um alerta.
O calor baixou. Os animais estão saindo de onde quer que se escondam do sol durante o dia.
Reduzo a velocidade para 70. Minutos a mais, ou a menos, não farão diferença a esta altura. É uma das vantagens da idade. A gente perde a pressa de chegar.
Poucos quilômetros a frente, um canguru. Tamanho médio. Está parado no meio da pista, quase camuflado pelo lusco-fusco.
Piso suavemente no freio. A velocidade desce em segurança para 50, 40… Espero pelo movimento dele.
O canguru olha na direção dos faróis e dispara. Cruza a pista toda bem na minha frente. Chega em segurança ao outro lado da pista e salta para o meio dos arbustos, para longe da morte.
E se eu tivesse só mais um ano? Um único ano completo? O que eu não poderia deixar de fazer nos últimos 365 dias da minha vida?
O que mais me falta, hoje, talvez, seja fé.
Em anjo da guarda, em Deus, na humanidade.
No amor, na bondade, na solidariedade.
Na eternidade.
Existe vida após a morte? Para além da que reside na memória dos que ficam?
Outro dia, outra estrada. Mesmas cores, mesmo calor, mesmas moscas.
Hora de mais uma parada. Preciso descansar do volante. Os filhos se revoltam.
Qual o sentido disso? É só outra pedra no meio do nada…
Uma pedra furada, chamam de janela da natureza…
Pedra furada? Já vimos em Jericoacara. Não precisa parar. Vai atrasar nossa chegada.
Eu paro mesmo assim. Eles são jovens, não entendem.
Na vida estrada, o que importa é o caminho, não o destino final.
Minha lista para os próximos 365 362 dias está pronta.
É curta. Três verbos, apenas.
Viver. Escrever. Acreditar.
Um dia, uma palavra, num sonho de cada vez.
Follow Up Zero
☁️ Depois das experiências com áudio no final de 2024, não enviei episódios de podcast das duas últimas cartas. O motivo é a viagem. Gravação de áudio infraestrutura. A vida na estrada dificulta. Novidades, a partir de fevereiro.
🎅🏽 A carta de Natal despertou uma avalanche de lembranças e acalmou os ânimos das irmãs no Brasil. Fizeram as filhoses – que, descobri surpreso, eram conhecidas de alguns dos meus leitores, como o
e o .📚 Ainda estou fora de Bali, mas a dica de leitura não precisa esperar a volta. Hoje, indico Hotel K – The Shocking Inside Story of Bali's Most Notorious Jail, da jornalista australiana Kathryn Bonella. O livro conta bastidores da vida dentro de Kerobokan, a prisão mais famosa da ilha.
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A tarde caminha para o final. O sol baixo projeta sobre o asfalto as sombras dos eucaliptos vermelhos que margeiam a estrada. Por trás das árvores, a luz doura enormes extensões de pastos. Cruzamos, a 80 quilômetros por hora, um …
Adorei a reflexão. Sim, vem mesmo de encontro com o meu texto. :)
Um feliz 2025, Ferdinando!
Ferdinando, boa tarde
Obrigado pelas fotos e pela citação.
plano para 2025 é fazer esse doce.