[Mundo afora #14] Manifestações do Divino em pedras, preces e palavras
Uma carta sobre o nascimento das palavras e a força que elas carregam

Solidão e busca. Essas foram a emoção e a ação predominantes na primeira semana em Portugal.
Sozinho a circular por estradas do norte, à procura de nova morada e escola para os filhos. Eu já sabia, de certa forma, o que me esperava.
Não imaginava, porém, que tantas paisagens de serras e edificações de pedra sob o sol do verão inclemente iriam se conectar a lembranças que a memória teima em inventar para desencadear devaneios no meio da madrugada.
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Madrugada. O dia ainda não nasceu. Já estou desperto, todavia. Terei um longo dia pela frente na estrada. Quero dormir mais. Não consigo.
Inquieto na cama recorro a um velho truque dos tempos de criança. Fecho os olhos, presto atenção à respiração, começo a rezar.
“Onde vais santo Antoninho, descalcinho e sem chapéu?”
Essa foi a primeira oração que a avó portuguesa me ensinou. Eu devia ter quatro ou cinco anos. Foi ela, católica fervorosa, quem me iniciou nos caminhos da fé.
“Vou andar a Via Crucis, que é o caminho do céu.”
A resposta de santo Antoninho incendiava a imaginação. Eu enxergava o menino a trilhar um caminho curvo de pedras ásperas, descalço, sob o sol — afinal, para que mais serviria a pergunta sobre o chapéu?
Depois de santo Antoninho, percebo agora, todos os meus caminhos imaginários passaram a ter curvas e pedras.
Nos desenhos infantis, as casas tinham um caminho a desembocar na porta de entrada. Era sinuoso, calçado com pedras, ladeado por arbustos de flores selvagens.
“Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco.”
A avó me ensinou que era preciso rezar todas as noites. De preferência ajoelhado ao lado da cama, mas ela era boazinha demais. Deixava-me rezar já deitado, aconchegado sob cobertas.
“Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vo…”
Eu quase sempre pegava no sono antes de terminar as preces. No dia seguinte, acordava preocupado. Deus ia ficar bravo? A avó me tranquilizava.
— O que importa é a intenção. Deus tudo sabe.
Até hoje não sei. A ideia de um Deus que tudo sabe me encantava, ou me assustava?
Ele sabia que 40 anos mais tarde, na única casa que construi na vida, haveria um caminho sinuoso de pedras levando da rua até a porta?
Terá sido Ele a soprar a ideia na imaginação da paisagista que, não apenas incluiu o caminho, mas ainda o ladeou com arbustos sem que eu mencionasse santo Antoninho, desenhos de infância, pedras, curvas e flores selvagens?
Onde nascem as ideias? No mesmo lugar onde brotam palavras?

"Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome.”
Por causa do que me acontecia na infância, passei a usar as preces como sonífero. Quando a ansiedade me rouba o descanso, eu oro para limpar a mente e voltar ao sono.
“Venha a nós o vosso reino, seja feita a tua vontade, assim na Terra como no céu.”
Nem sempre funciona como antigamente. Já não sou mais aquela criança.
Além disso, há a longa viagem. A ciência é taxativa: o corpo está em Portugal, mas o organismo ainda vive o horário de Bali, oito horas à frente.
Ou será vontade Dele, que tudo sabe e não me deixa adormecer para que eu comece a escrever esta carta?
A mente mergulha no abismo mais profundo da minha existência, um tempo em que orei com verdade e propósito, e não apenas em busca do sono.
Estou de volta à sala de recreação do hospital. À minha volta, crianças riem, brincam, divertem-se. Como se não existisse amanhã.
Como podem ser tão sábias, se ainda tão pequenas?
O amanhã não existe. O hoje é tudo o que temos. O tempo presente em que essas crianças enfretam a mais letal das doenças sem perder o sorriso.
Ainda no mesmo hospital, ela surge no papel à minha frente. A casinha de telhas laranjas em duas águas, paredes de tijolos vermelhos, porta marron, duas janelinhas. Um poço do lado esquerdo, uma árvore a sombrear à direita. Caminho sinuoso de pedras até porta.
— Nossa papai, você desenha muito bem!
Ao meu lado, meu filho Caio olha a folha e me arranca dos devaneios. Sou adulto, mas continuo a desenhar a mesma casa, tantos anos depois.
“Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da Terra.”
De todas as orações, o Credo é a que mais me encanta como escritor.
“E em Jesus Cristo, seu único filho, nosso senhor.”
É como um filme passando diante dos olhos da mente.
“Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria.”
A biografia completa do maior líder religioso da história da humanidade.
“Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado.”
Um homem cuja existência jamais foi provada, mas cujas ideias deturpadas por milênios são seguidas por mais de 2,4 bilhões de fiéis.
“Desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus.”
Uma vida inteira em sete frases, apenas. Poder de síntese invejável. Quem escreveu essa prece? Quem inventou essa personagem?
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”
Essa eu sei quem escreveu. João abre seu evangelho com ela.
Um raro momento de franqueza, a admitir que sempre, afinal, foi apenas isso? Uma questão de narrativa? De palavra?
VERBO. sm. ‘palavra’ ‘(Gram.) palavra que designa ação, estado, qualidade ou existência de pessoa, animal ou coisa’ | xiii, vervo xiii | Do lat. vĕrbum.
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A se acreditar em João, o Verbo, logo a Palavra, era Deus.
A Palavra, nosso objeto de devoção — nós, escritores — como primeira manifestação do Divino.
A memória volta à estrada, no dia anterior.
Depois de mais uma curva, avisto paredes altas de pedra. Um telhado em duas águas, uma cruz discreta no cume.
Encosto o carro. A placa informa se tratar do Mosteiro de São Pedro de Roriz. Um templo erguido no ano de 1070. Uma prova concreta da força da Palavra.
Ainda faltavam 58 anos para o nascimento de Portugal quando homens e mulheres carregaram cada um daqueles blocos de pedra monte acima para construir o local de devoção. À Palavra trazida pelos romanos, juntamente com suas armas afiadas de dominação.
Lanças e espadas se partiram. A Palavra ficou. Já dura mais de mil anos.
Onde nasce a palavra? De que profundezas brota e se enche de significados antes de ganhar vida no papel ou nas telas iluminadas?
Eu sei, a ciência explica. Na mente humana. Mas, se o cérebro é semelhante em todos os humanos, por que as minhas palavras são diferentes das suas?
De onde vem a inspiração que a cada um toca e ilumina de maneira distinta?
A Palavra é Deus, como escreve João?
Ou talvez eu só precise de mais horas de sono e, logo mais, nenhum desses pensamentos desgovernados sobreviverá à luz de mais um dia sob o sol inclemente do verão europeu?
Antônio Geraldo da Cunha. Dicionário etimológico da língua portuguesa (Portuguese Edition) (p. 673). (Function). Kindle Edition.
É lindo como o texto nos leva da pedra à Palavra.
E da Palavra à dúvida.
E como talvez a resposta esteja na própria Palavra.
Que bonito. Acho que a inspiração vem do olhar, do sentir próprio de cada pessoa.
Eu jamais teria feito palavras e essa ligação que vc fez. E essa é a beleza da escrita, ler e nos inspirar uns nas palavras dos outros.