#12 O cão, a casa e o reencontro inesperado
A missão era achar um Pit Bull, em 1991, em São Paulo. Eu, então um jovem repórter, não podia imaginar a armadilha que o destino me preparava.
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Eu era estagiário no Jornal da Tarde em maio de 1991. Da Inglaterra chegou a notícia: um Pit Bull tinha atacado e quase matado um bebê.
Será que existia um cão daqueles no Brasil?
O pauteiro me passou a missão: encontrar um Pit Bull em São Paulo.
— Posso afirmar com certeza: não existem cães dessa raça oficialmente registrados no Brasil.
Do outro lado do telefone, Nelo Pedra Gandara é incisivo.
Ex-colunista de cinofilia d’O Estado de S. Paulo, um dos fundadores do Kennel Clube paulista, ele cria cães de raça.
Conhece em detalhes esse universo totalmente novo para mim.
Eu tinha apenas 10 meses na redação. Era estudante do terceiro ano de Jornalismo da PUC-SP.
Precisava provar minha competência. Derrubar a pauta depois de falar com apenas uma fonte não era legal. Não iria desistir assim tão facilmente.
— Mas será que não existe algum Pit Bull que não tenha sido registrado?
Nelo se exaspera com a insistência do foca1.
— Olha, pode até ser que exista. Mas numa cidade desse tamanho, como é que você vai encontrar esse cachorro?
Se o Nelo não podia me ajudar, o jeito era ampliar as buscas.
Num tempo sem internet, Google, WhatsApp, só nos restavam os amigos.
A gente pegava a cadernetinha de contatos e calejava o indicador no disco do aparelho telefônico.

Grudado ao telefone, disparo ligações para todos os conhecidos que gostam de cachorros.
Alguém não teria ouvido falar num Pit Bull? Pode consultar amigos cinófilos e me ligar de volta com as novidades?
Quando terminei de ligar para o décimo contato, recomecei de novo, para coletar as respostas.
Na terceira ligação, a insistência foi recompensada. Era hora de ir para a rua.
No formulário enviado à fotografia, explico a pauta: “Fotografar um cão da raça Pit Bull numa residência na Zona Leste.”
Na máquina de escrever, preencho o endereço na requisição de transporte: “Rua Siqueira Bueno, 1956 - Belenzinho - Mooca.”
Curioso. Minha avó morou nessa rua quando eu era criança.
Eu já falei sobre a casa em que a avó morava na minha infância nesta outra carta, publicada no Natal.
Essa avó é a mesma com quem eu tinha uma ligação muito forte. Aquela a quem dediquei a carta sobre a saudade.
O fotógrafo designado para a pauta é Itamar Miranda.
Baixo, magro, uma enorme barba começando a ficar grisalha, Itamar é veterano. Trabalhou no Notícias Populares. Pelas costas, tem o apelido de “Bebê Diabo”.
É uma longa história, mas, basicamente, ninguém que goste da própria mãe pode chamá-lo pela alcunha.
Itamar fala muito, xinga pelos cotovelos. A caminho da Mooca, ele reclama de tudo. Do trânsito, da pauta, do fato de ser matéria do JT - sim, eles preferem fotografar para o Estadão -, do calor, do carro velho…
— E esse cachorro aí? Será que o vira-lata é mesmo um Pit Bull?
Eu só comecei a desconfiar da peça que o destino me preparava quando o carro, subindo pela rua Itaqueri, dobrou à direita na Siqueira Bueno.
A quadra era a mesma em que minha avó havia morado.
Estavam lá o posto de gasolina na esquina — onde na infância enchiamos os pneus das nossas bicicletas para passear pelo bairro — e a sequência de casinhas geminadas — algumas transformadas em pontos de comércio.
Verifiquei a numeração do lado onde ficava a casa da minha avó. Era, de fato, o lado par da rua. O mesmo onde estaria o cão que procurávamos.
O carro diminui a velocidade e encosta. A calçada na frente do número 1956 é rebaixada, a casa tem uma entrada de veículos.
O portão é outro, o acesso dos carros está coberto. As paredes têm nova cor. Nada disso, porém, me impede de reconhecê-la.
Estou na frente da casa da minha avó, onde não piso há mais de dez anos.
Depois que a avó se mudou para perto da minha casa, a gente reduziu as visitas à Mooca.
Os avós paternos tinham morrido. Tios e tias estavam espalhados por outros bairros da região.
Uma única tia ainda vivia na casa vizinha. Mas a gente quase nunca ia lá. Ela visitava a avó, que morava perto da minha casa, toda semana.
Tocamos a campainha, a dona atende desconfiada. Explicamos o motivo da visita, ela verifica nossos crachás, fica mais tranquila.
O cão é mesmo um Pit Bull. E bem bravo. Ela o coloca na coleira e abre o portão.
Eu a entrevisto enquato Itamar atiça o Pit Bull para conseguir fotos dele latindo, feroz, as presas arreganhadas.
No final da conversa, eu revelo. Sou sobrinho da vizinha. A Eulália, da casa ao lado. A dona fica surpresa.
— Mas então, nós compramos esta casa da sua avó!
Sim, eu admito. Passei a infância aqui, até ela se mudar… Férias, Natais…
— Quer entrar para rever a casa?
Eu não sabia se queria entrar... Ali do quintal — que na minha memória era imenso, mas agora parecia pequeno —, eu já tinha ideia do que aconteceria.
Não tive muito tempo, porém, para refletir. Deixei-me levar pela nova proprietária para o interior da casa.
Entramos pela porta da sala na varandinha acanhada; na memória da infância era um plataforma altíssima de onde desafiávamos os primos, a ver se tinham coragem de saltar para o quintal.
A sala, que no Natal recebia a imensa árvore com bolas frágeis e reluzentes, também não se conecta com a da lembrança. Parece pequena, escura.
A dona me traz para a cozinha e me surpreendo: como cabia ali tanta gente nos almoços de fim de semana? Nas festas de fim de ano?
Quando ela faz menção de me levar ao quintal dos fundos — onde ficavam o galinheiro, a goiabeira, o barracão de plantas —, eu peço desculpas. Preciso voltar à redação à tempo de revelar as fotos, escrever a matéria…
Muito obrigado por nos receber, sim a história estará no Jornal da Tarde de amanhã, em todas as bancas… Pode comprar para ler a matéria.
Nos despedimos e fujo. Antes que a realidade destrua todas as ilusões da infância.
A reportagem foi um sucesso. Havíamos encontrado em São Paulo um Pit Bull que nem os criadores de cães de raça sabiam que existia.
A foto do cão, presas arreganhadas, estampou a primeira página. O texto, batido à máquina e devidamente assinado, ganhou o topo da página interna.
No dia seguinte, repórteres veteranos, redatores, todos me cumprimentam. Os editores estão felizes. O estagiário é uma promessa em ascensão!
As únicas a perceberem certo mal-estar são as duas companheiras de mesa.
As repórteres Vera Freire e Silvia Lenzi muito me ajudam neste início de carreira e estranham o desconforto. Então? Não estou feliz com a matéria?
— Vocês não fazem ideia do que me custou encontrar esse cachorro…
Ainda não fazia três meses que a avó tinha morrido quando a busca pelo cão me levou de volta à casa que havia sido dela.
Foi numa noite de sábado, aos 89 anos.
Ela acordou sobressaltada, não se sentia bem. Pediu ajuda à minha tia. Levantou-se da cama, foi sentar na cadeira de balanço na sala.
Fechou os olhos. O coração parou de bater.
A carta de hoje inspira-se em crônica do
sobre as peças que a memória, por vezes, nos prega. Recomendo.Leia também
#17 Como aprendi a sentir a palavra saudade
No banco do jardim ela tomava sol. Bengala ao lado, rosário na mão, ela não rezava naquele instante. Estava ocupada em recompensar minha companhia com histórias sobre a infância na Serra da Estrela.
No jargão jornalístico, foca era todo repórter iniciante, sempe animado com qualquer pauta que mandassem para ele.
Adorei Ferdi e parabéns pela sua insistência na reportagem. Bjs
Esse fenómeno é recorrente: o que nos parecia enorme na infância, agora parece bem mais pequeno. Belo texto e obrigado pela menção.