#3 Onde é o seu lar? Não responda ainda...
Embora pareça simples, essa pergunta esconde uma profundidade filosófica. Especialmente quando você olha ao seu redor e não vê um lugar para chamar de lar
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Where are you from?
A segunda pergunta que você ouve quase diariamente no início de uma temporada no exterior é clássica. Logo depois de “What is your name?”, vem sempre ela: de onde você é?
Você ouve e também pergunta bastante. Especialmente numa comunidade diversa como a da escola de meus filhos em Bali, com famílias de 53 países.
Até que você aprende: não se pergunta a um expatriado de onde ele é.
Muitos expatriados não entendem o sentido dessa pergunta. A rigor, eles não são de um só lugar.
A resposta que ouvi de uma adolescente outro dia ilustra a situação.
Ela contou que a mãe nasceu na França; o pai, na Inglaterra. Ela nasceu em Singapura, mas já morou no Japão, na Tailândia, agora vive em Bali…
Nesse momento, outra mãe que a ouvia corrigiu a pergunta:
– Qual desses lugares é o lar para você?
Não deixa de ser uma pergunta filosófica. Uma pergunta não muito fácil de responder, se você parar para pensar.
Eu já morei fora do Brasil em duas ocasiões.
Angola foi uma relação de encanto e desilusão durante um ano. Desilusão com as mazelas e iniquidades de um país rico com muita gente pobre. No fim, venceu o encanto pela coragem do povo que sorri sem razão para ser feliz.
De Luanda, guardo boas lembranças e amizades para a vida.
Estados Unidos tinha tudo para ser melhor. Mas foi ladeira abaixo em três anos e meio.
Não deixou de ter momentos especiais. Primeira vez no papel de pai em tempo integral; primeiro livro terminado e publicado. Sonhos realizados!
Não se iluda, porém. Não foi fácil. Um dia escreverei sobre as dores daqueles anos. Não hoje.
A diferença entre aquelas duas experiências e a de agora é: antes, em nenhum momento eu deixei de ver o Brasil como meu lar. Agora, porém…
Não consigo evitar a lembrança da minha avó portuguesa. Queria ter a chance de perguntar: o Brasil era o lar para ela?
Ainda criança, ela embarcou num navio e cruzou o oceano. Jamais voltou aos picos nevados da Serra da Estrela e às cerejas que colhia no pé em sua infância.
Claro que o lar dela era o Brasil. Ela nunca mais voltou a Portugal!
Então por que as lágrimas silenciosas que tantas vezes a vi derramar sozinha?
Com as memórias de Portugal, que usava para iluminar minha imaginação de criança, minha avó me despertou para o poder da história bem contada.
Qualquer dia escreverei sobre ela, sobre como me ensinou a sentir a palavra saudades. Qualquer dia, não hoje.
No Brasil estão amigos de várias vidas; está a família...
Lá aprendi a falar e a escrever. Português é a língua em que me sinto mais à vontade.
Por que, então, a resistência para chamar o Brasil de lar?
Depois da pandemia, com tantas polarizações… Truculência nas relações sociais, ódio, incompreensão.
Muita coisa emergiu do inconsciente coletivo de uma sociedade edificada sobre força da violência. E as notícias que continuam chegando, então…
Não consigo evitar a visão do brasileiro como um povo intrinsecamente violento.
Sinto que não quero isso para mim; não quero para os meus filhos. Ninguém precisa concordar. Respeito quem sente de outra forma.
Em algumas situações, sentir é um verbo que se conjuga melhor no singular.
Nasci no Brasil, herdei a nacionalidade portuguesa, vivo em Bali.
Tenho casa, tenho teto, tenho memórias afetivas. Não tenho emprego, mas os boletos estão em dia. Não estou perdido. Tenho profissão. Eu escrevo.
É o que me define no mundo. Uma ocupação que exerço de onde eu quiser.
No entanto, neste momento, não tenho um lugar para chamar de lar.
Bali tem muitas qualidades, mas ainda não é o meu lar.
Serei, tecnicamente falando, o que em inglês chamam de emotional homeless?
Não, isso é algo mais sério. Envolve questões de saúde mental…
E não ter um lar, temporariamente, não precisa ser uma coisa ruim. Pode significar, apenas, que o futuro segue aberto para novas aventuras.
Alguém mais já sentiu esse estranhamento? Você, que não me abandonou até agora, sabe onde é o seu lar?
Ah, a foto. Essa imagem que escolhi para a carta era para ser uma representação artística da bandeira do Brasil. Quando olho para ela, porém, só vejo o barquinho solitário.
Você tinha enxergado a bandeira na foto?
Follow up Zero
Nosso rápido follow up sobre pontas ao vento nas cartas anteriores:
🌞 As viagens desta temporada asiática continuam sendo publicadas no site do DESNORTEANDO. Esta semana, foi ao ar a reportagem feita nos impressionantes templos de Angkor, no Camboja. Com vídeo do repórter-mirim Caio sobre a simbiose entre natureza e fé no templo Ta Phrom.
🌩️ Até o fechamento desta edição, Julia Roberts não havia se pronunciado sobre o conteúdo da carta da semana passada. Uma pena. Gostava de saber a opinião dela. Alguns leitores que já estiveram nesta ilha, porém, discordaram elegantemente do que identificaram como certo negativismo do missivista. Todas as opiniões são bem-vindas. Esclareço, porém, que não quis criticar Bali, mas sim ajustar expectativas. Se você leu até o fim e não compreendeu isso, então falhei na escrita.
☁️ Fazendo a devida correção, o Felisberto do Murilinho é com S, e não com Z, como escrevi na semana passada. Quem me alertou foi a querida Lidice Bá, leitora e amiga de muitas vidas. Obrigado, Lili!
🌪️ Os protestos em Moçambique foram banidos pelo governo da Frelimo e classificados como atos de terrorismo, o que abre caminho para repressão ainda mais severa. Pelo menos um jornalista português foi expulso do país – alegação: não ter visto de trabalho – e uma equipe de TV da África do Sul foi detida. Os dois jornalistas sul-africanos, aparentemente, estão incomunicáveis. Quando repórteres são afastados do front, só podemos esperar pelo pior.
🌞 Nossa comunidade cresce. Agora somos 58 leitores conectados! Estou adorando retomar contato com tantos amigos. Alguns, inclusive, têm trocado e-mails. Sou eternamente grato a todos que ajudam a espalhar estas palavras. Vê valor nestas reflexões para alguém? Então indique o DESNORTEANDO. Basta clicar nesse botão.👇🏼
Até a próxima semana. Terima kasih! (Obrigado em Bahasa).
Acho que os angolanos já sabem o que nós ainda não sabemos: não precisa de razão para ser feliz. Basta ser. A felicidade verdadeira independe de externalidades. Não é preciso coragem para isso e sim sabedoria.
Li em voz alta seu texto e ao final, Edu respondeu: meu lar é dentro de mim! Achei beeem filosófico mesmo, a cara dele, mas fiquei refletindo. Meu lar por ora é a Itália, onde moro e não penso em sair em curto prazo. Aqui fiz ninho, amigos e porto histórias de minha ancestralidade fiorentina e napoletana que fazem com que me reconheça por essas bandas. Mas minha casa sempre será o Brasil. Lá estão os amigos de velha data e é sempre ao lado deles que quero estar todo sábado à noite, ou quando algum fato marcante acontece (uma festa, um luto). Sim, é muita desigualdade, muita violência, muita polarização, mesmo assim somos tão potentes e únicos! Eu encho a boca para responder sobre "minha casa" e sempre quero ser vista como de “meio lá e meio cá”. Lorena, minha filha do meio, tatuou o Brasil no braço. Talvez para não esquecer seu endereço. Já o pequeno, esse está esquecendo…