[Mundo Afora #13] Sem começo, sem meio, sem final
Na primeira carta escrita em Portugal, ainda sob efeito do jet lag e de 32 horas de voos e aeroportos, não fui capaz de avançar além de um conjunto fragmentado de pensamentos e emoções
Na carona do GoJek1, eu colo meu capacete ao da Ibu2 que dirige a Honda Beat. É uma tentativa de proteger o rosto dos grossos pingos de chuva que a velocidade da scooter transforma em agulhadas nas bochechas, nariz e boca. O capacete não tem visor, mas não me queixo.
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Angelina — é esse o nome da Ibu — foi a única a aceitar a corrida sob a tempestade tropical. Não fosse ela, eu não teria cumprido a última tarefa no meu último dia em Bali: fechar a conta no banco.
Tarefa que, em plena era da IA, só pode ser feita presencialmente na agência em Ubud, há 40 minutos de distância da casa em que eu moro.
Cada vez mais artificial, a inteligência da humanidade.
Saí de Bali às 20 horas da quarta-feira, 25 de junho. No Brasil, eram 9 horas. Cheguei ao Porto, às 20 horas da quinta-feira, 26. No Brasil, eram 17 horas.
Noves fora o fuso-horário, foram 32 horas entre aviões, aeroportos, cabines de imigração, esteiras de raio-x, passadeiras de malas, salas de espera.
No dia mais longo da vida, não sobrou tempo para a carta da semana.
Por isso, o texto hoje é uma coleção de fragmentos sem começo, sem meio, sem final. Um experimento de narrativa não-linear? Podemos até chamar assim, mas foi só falta de tempo mesmo.
Com uma chuva sem pudores de desabar tão fora de época. Foi assim que Bali se despediu de mim.
No último trajeto pelo trânsito caótico, desorganizado e ainda assim surpreendentemente pacífico, peguei corrida com Ibu Angelina para me despedir do vento soprando liberdade no corpo nos passeios de scooter.
Filas para entrar. Filas para sair. Filas para ir ao banheiro.
Gente demais. Nos aviões, nos aeroportos, no mundo.
Gente demais aglomerada ao redor dos escassos pontos de tomada nas salas de espera dos portões de embarque.
Muitos bancos, muitas salas de espera, muitos portões de embarque. Poucas tomadas de energia.
E toda a gente deseperada, abanando cabos de diversas cores em busca da energia que não pode faltar. Toda a gente de cabeça baixa, olhos plugados nas telas iluminadas para fugir ao tédio da espera.
Nas filas para entrar, nas filas para sair, nas filas para o banheiro. Cabeças baixas, olhos plugados.
Com as pálpebras semicerradas protejo os olhos da água e contemplo, pela última vez, o universo balinês.
Coqueiros altos tentando alcançar o céu; oferendas alagadas nas calçadas; imagens assustadoras nas portas das moradias; ataps3 que se destacam do caos visual nas extremidades dos telhados das vilas balinesas e dos joglos javaneses.
Imagens que ficarão na memória, a colorir a lembrança de um ano memorável.
No avião com destino ao Porto, meninas adolescem alvoraçadas a caminho de casa.
— Ó Juliana, quem é que ao final ficou ao seu lado?
— Não podes trocar de lugar?
— Eu na janela não me sento. Tenho medo.
São seis. Talvez oito? Trocam frases não necessariamente interligadas. Como se cada uma falasse consigo mesma em voz alta, no sotaque português do Porto.
— Pois, entraram todos? Há muitos lugares por ocupar.
— Há outro autocarro a chegar ali.
— É brasileira, aquela que ali está? Percebes?
Fazem piadas com nada, riem alto de tudo. Trocam poltronas pelo prazer de trocar. Pouco importa quem senta ao lado de quem — desde que aquela uma fique longe da janela.
— Oi, há um PC aqui em cima? Terá esquecido, o moço?
— Olha lá, o capacete! Está a embarcar mesmo cá nesta aeronave.
Mais risadas exageradas permeiam a conversa. Um diálogo desgovernado, sem começo, sem meio, sem final.
Eu reclino o encosto da poltrona do avião. Saboreio o prazer tão simples de entender o que as pessoas falam ao meu redor.
Tão simples e, ao mesmo tempo, vital para quem escreve. Ouvir a conversa alheia.
O Uber indonésio.
Mãe, em Bahasa Indonésia. Se transformou em pronome de tratamento. Toda mulher é Ibu, todo homem é Pak (pai).
Enfeites de concreto usados com o acabamento nas pontas do telhados.
Muito legal os fragmentos da despedida e também o texto!
Gostei bastante, e me senti lá com você!