#24 Você escreve sobre o quê?
Sobre tudo. Konstantin Liévin, Benji Kaplan, Capitão Nascimento; personagens que não aceitam seu papel na história. Sobre o nada. A dor de viver - e escrever - sem saber para quê.
Por 35 anos, fui jornalista. Escrevi, editei e publiquei em alguns dos maiores jornais e revistas do Brasil.
Posso afirmar: eu escrevo sobre qualquer coisa, em qualquer lugar.
Duas verdades a esconder uma fragilidade.
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A escrita superficial, de fato, me é relativamente fácil. Ocorre nos ambientes mais desfarováveis, sobre os temas mais áridos.
Com a escrita profunda, subjetiva, a história muda.
Durante décadas aceitei a primeira como destino. Meu papel no mundo. Só mais recentemente aprendi, lendo, escrevendo: ninguém precisa se conformar com os papéis que lhe são atribuídos.
No início de Anna Kariênina, Konstantin Liévin é rejeitado ao pedir em casamento a mão da princesa Kitty Cherbátskaia.
Frustrado em seu sonho de construir família, envergonhado com a rejeição, Liévin se recolhe. Refugiado na fazenda em que vive, no interior da Rússia, ele acredita não ter escolha. É o destino. Kitty está apaixonada por Vrônski.
Liévin vai mesmo se resignar? Vai aceitar o papel que lhe foi atribuído?
Passei um bom tempo bloqueado na reescrita da minha primeira ficção, sobre a qual já falei aqui uma vez, no início da newsletter.
Um novela de espionagem que nasceu sem grandes pesquisas, sem desenvolvimento prévio de personagens. Com a história na cabeça, eu havia simplesmente sentado e escrito cerca de 250 páginas. Intuição pura.
Na hora de reler, começaram os problemas. O que mais me incomodava? Um personagem concebido como coadjuvante havia se rebelado. Transformara-se num segundo protagonista. Talvez, até, o primeiro?
Ao cruzar a Linha imaginária do Equador sobre o Atlântico, distraio-me da turbulência com o filme A verdadeira dor. Oscar de ator coadjuvante a Kieram Culkin este ano (2025).
Para quem não assistiu: dois primos norte-americanos se reúnem numa viagem à Polônia para conhecer o lugar onde a avó nasceu.
Tento entender. Por que a Academia considerou Benji coadjuvante? Ele carrega a história. Se não é protagonista, quem o será? O primo David?
Ok, tanto David quanto Benji terminam A verdadeira dor como entraram.
O primeiro seguirá anestesiado pela vida nos padrões “normais” da sociedade capistalista; o segundo continuará dominado pela dor que o faz transformar a vida de quem ele toca, mas o impede de se transformar a si próprio.
A dor de saber que vive, sem saber para quê. A verdadeira dor.
Se a palavra é Deus, como escreveu João no início de seu evangelho, então Deus é o autor no mundo que cria.
Nós, que escrevemos sem saber para quê, somos deuses das histórias que inventamos, das personagens que criamos à nossa imagem e semelhança.
Culkin ganhou o Oscar, está feliz. Benji, porém, não pode ser um coadjuvante. Vejo nele a síndrome de Capitão Nascimento.
Em 2007 fiz um curso no Rio. O roteirista Cláudio Mac Dowell nos contou uma história sobre a escrita de Tropa de Elite, que havia estreado naquele ano.
Segundo Cláudio, no roteiro original o protagonista e narrador era o aspirante Mathias. Capitão Nascimento era coadjuvante.
A atuação de Wagner Moura, porém, mudou o destino. Os roteiristas tiveram de reescrever a história para transformar Nascimento em protagonista.
Konstantin Liévin, Benji Kaplan, Capitão Nascimento. Personagens inconformados com papel que lhes foi atribuído. Tomam as rédeas para mudar o destino a eles reservado.
Demorei a fazer as pazes com meu coadjuvante rebelde na novela de espionagem. Só o aceitei quando entendi que, nas histórias, como na vida, criadores não têm pleno poder sobre suas criações.
Sempre há escolha, livre-arbítrio.
Bobagem, responderia o professor Assis Brasil. Mistificação de autores, essa ideia do personagem ganhar vida e tomar as rédeas da história.
Quem sou eu para contestar o professor Assis Brasil?
Ao longo da escrita da novela de espionagem, aprendi que todo personagem carrega em si um pouco do autor.
Talvez, naquele momento, um único protagonista fosse pouco para todas as minhas incoerências? Que sei eu?
E você? Escreve sobre o quê?
Adorei a provocação! Eu já testei escrever sobre tanto...hoje amo escrever sobre mim (no meu diário, de forma terapêutica) e sobre o maternar como um eco de coisas comuns às mães. E essa histório do roteiro de tropa de elite? Que demais!
Escrevo sobre o que vejo, histórias que me contam e alguns segredos. Escrevo pra desaguar o que calo, a mancha de sombra que me devora inteiro.