#11 A pedra na superfície do lago
Vozes que não se calam dentro da mente atormentada embaralham sonhos, memórias e ficção na carta desta semana.
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Deitado de costas no fundo do lago, eu observo o mundo.
Estou morto? Só posso estar.
Ou aprendi a respirar debaixo d’água? Impossível.
Estou morto.
A vida, porém, continua lá fora. Acima da superfície plácida do lago.
O tempo passa e ela não me deixa. A professora. Dona Terezinha. Era esse o nome dela.
Dizia-se na escola que era psicológa. Dava aulas de orientação vocacional para minha turma na 6a série.
A gente tinha 12 anos e a escola achava que era hora de decidir a profissão.
Para o resto da vida? Aos 12 anos?
Foi dona Terezinham quem me disse a famosa frase sobre a qual já escrevi aqui em pelo menos três ocasiões.
— Ah, meu filho. Você nunca vai sustentar uma família com essa profissão.
A frase virou crença. Complexo.
Impediu-me de arriscar como escritor. Inclusive depois de passar por terapia, como relatei na semana passada.
As pessoas caminham, correm, pedalam.
Passeiam seus cães.
Namoram, lêem, fazem piquenique.
Cochilam na grama.
À beira do lago. Ninguém nota minha presença.
Volto a 2019. Meu livro, a “biografia” do Jornal da Tarde, acaba de ganhar o Prêmio Livro Reportagem Amazon.
Fui a São Paulo para o anúncio do resultado. Na manhã seguinte, ainda embalado pela euforia da vitória, localizo dona Terezinha.
Ela não se lembra de mim. Explico, fui aluno dela, gostaria de encontrá-la. Marcamos um café no Girondino, centro histórico de São Paulo.
Eu chego mais cedo. Levo um exemplar do livro. Enquanto a espero, abro a capa e escrevo a dedicatória na página de rosto:
“Ah, meu filho. Você nunca vai sustentar uma família com essa profissão.”
Parado, de olhos abertos.
De costas no fundo do lago.
Os olhos fixos percebem um ponto ínfimo no céu.
Parece crescer, se aproximar.
Dona Terezinha chega. Está velhinha. O cabelo continua curto, como usava na época, mas agora é branco.
Eu me levanto para recebê-la. Ela claramente não se lembra de mim.
Sentados à mesa, pedidos feitos, eu conto. Escrevi um livro, acabo de ganhar um prêmio. Ela me cumprimenta, ainda indecisa sobre a razão do encontro. Explico, quero presenteá-la com um exemplar.
Ela agredece, recebe o livro ressabiada. Tem dedicatória, eu digo. Ela pega os óculos de leitura, abre a capa, lê a frase. Olha para mim. A dúvida estampada no rosto.
— A senhora me disse isso, há 36 anos. Nas aulas de Orientação Vocacional.
Ela parece constrangida. Olha novamente a página de rosto. Fecha o livro. Emudece. Como se esperasse uma explicação.
— Eu demorei todo esse tempo para virar escritor por sua causa.
Dona Terezinha coloca o livro sobre a mesa. Eu não tiro os olhos dela. Tento adivinhar que sentimentos a dominam. Constrangimento? Culpa?
Ela se volta para mim. Sustenta o meu olhar.
— Por minha causa? Eu amarrei suas mãos esse tempo todo?
A resposta me surpreende. Devo confessar.
— Se queria tanto ser escritor, você deveria ter insistido no seu sonho…
Uma pedra.
Caindo em direção à superfície plácida do lago.
Uma pedra prestes a perturbar a tranquilidade mórbida do leito.
Corto para o passado mais longíquo. Um fim de tarde de 1985.
Tenho 14 anos, estou na 8a série. No próximo ano, começo o Colegial.
Meu pai dirige o carro, eu estou no banco do passageiro. Lá fora já é noite quando ele me dá a notícia.
— No ano que vem, você vai estudar à noite e trabalhar comigo na loja durante o dia.
Não é uma pergunta. Estou sendo comunicado.
— É importante. Vou te registrar em carteira, você vai ter seu salário…
Não fui consultado, tampouco há espaço para contestação.
— Vai ter seu próprio dinheiro, vai aprender a dar valor a ele…
Não! Quero continuar estudando de manhã, com meus amigos. Quero continuar escrevendo meus romances policiais infantis!
As vontades gritam dentro mim, mas morrem na garganta. Não digo nada.
— Já conversei com sua mãe, tudo certo. Já o matriculamos no noturno.
A pedra desaba na superfície plácida do lago.
O peso multiplicado pela queda. Perturba a imobilidade.
Ondas se formam. Tudo se agita, tudo se desequilibra.

Vozes que nunca se calam na minha cabeça constróem o reencontro fictício com Dona Terezinha; reconstróem o diálogo verídico com o pai.
Por décadas eu os culpei pelos rumos que tomei na vida.
A frase de Dona Terezinha esfriou meu ânimo; a mudança na rotina enterrou o sonho. Depois de começar a trabalhar na loja do pai, empacotei a Lettera 82. Parei de escrever.
Está na hora, porém, de perdoá-los.
A culpa não é deles. Eu sei. Só queriam o meu bem.
Eu poderia ter questionado a professora. Como ela sabia que escritores não sustentavam famílias?
Deveria ter expressado a insatisfação ao pai: eu não queria aprender a importância do dinheiro que escritores não ganhavam para sustentar família.
Eu nada disse, porém. A nenhum dos dois.
Deixei que escolhessem por mim.
É o fim da calmaria.
A pressão cresce, os pulmões anseiam por ar.
Vomito a água que me preenche.
Acordo. Estou vivo, afinal.
Amanhã, completo 54 anos.
42 deles acreditando que não é possível viver da escrita no Brasil.
Creio com tanta força que jamais tentei.
Hoje, me liberto da “crença”.
Ou pelo menos tento, neste exercício de autoficção.
Fecho os olhos para tentar voltar ao sonho. Não é possível.
Imagino as ondulações causadas pela pedra se abrindo em círculos perfeitos.
Apatia, vitimismo, choradeira, imobilidade se espalham serenamente até se tornarem tão distantes que mal posso enxergá-los.
Construo a cena de Dona Terezinha partindo em direção ao Largo de São Bento. Leva o meu livro debaixo do braço.
Adeus, dona Terezinha. Leve também as boas intenções. Todas.
Só fizeram me limitar até aqui e, sabe como é, metade da vida passou.
Nada foi em vão, mas é hora de andar e errar e cair e acertar e levantar sozinho.
Sem ninguém mais para culpar.
Só. Eu.
Quando chegar o momento, esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Na semana passada fui de Gil. Hoje é Carnaval, nada como um bom samba para lembrar que “Amanhã há de ser outro dia”.
Apesar de você, Dona Terezinha.
Chico Buarque, que escreveu isso tudo em 1978, é outro compositor citado no livro sobre a história do Jornal da Tarde. Ele estudava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP nos tempos áureos do JT na Rua Major Quedinho.
Frequentava, com outros músicos e os jornalistas do JT, o Sand-Churra, um botequim no subsolo da Galeria Metrópole, no centro de São Paulo.
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Amanhã (01/03), para comemorar o aniversário, aceitarei os presentes enviados antecipadamente pelos leitores que querem apoiar meu trabalho. Abrirei, finalmente, as assinaturas pagas. Quer me presentear? É por aqui.
A carta semanal continuará gratuita, mas março será um mês de lançamentos de novidades exclusivas para os assinantes pagos.
Passei por algo parecido quando alguém me disse: “o que você escreve nunca será literatura”… Mas não me deixei dominar... Não é fácil... Não é simples...
Qual aspirante a escritor brasileiro nunca ouviu "Não vale a pena ser escritor no Brasil", "Você vai passar fome", "Nunca vai conseguir se sustentar como escritor"? Eu juro que esses são dilemas com os quais lido diariamente, e eles têm lá suas bases, mas ao mesmo tempo, eu acredito que deveria ser mais flexível nesse sentido, de me permitir ser mais escritora e não me limitar tanto por medo das dificuldades que encontramos nessa carreira. Escrever, afinal, sempre foi o meu sonho.
Fico feliz de ter lido esse texto. Me vi nele em diversos momentos e ele me deu um tanto em que pensar. Por mais que a carreira de escritor tenha seus altos e baixos, a gente nunca vai saber se vai dar certo ou não até tentar. E nunca é tarde para começar.
Aproveitando, felicitações pelo aniversário! Te desejo saúde, paz e muitos anos de vida para viver e escrever todos os livros que você queria.