#4 Você é pássaro solto, ou prefere a gaiola?
Não deixa de ser um paradoxo: a mesma escola que nos ensina a libertar passarinhos, nos treina para a existência conformada nas gaiolas imaginárias da vida adulta.
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Eu tenho um tio português. O nome dele é Joaquim.
Na infância, em Portugal, tio Joaquim tinha amigos que matavam passarinhos. Ele não. Maldade, matar passarinho.
Tio Joaquim pegava os bichinhos, enfiava-lhes um caniço no rabo e soprava para vê-los inchar.
– Credo, que nojo! – reagíamos nós, crianças, quando ele contava a história.
Ele se divertia, com a lembrança e com a reação. Essa criançada da cidade…
Na minha infância, a gente não matava nem maltratava passarinho. Ainda era comum, porém, ver gaiolas cheias de canários nos quintais do Bairro da Mooca, em São Paulo.
Depois de crescer, nunca mais vi. Até chegar em Bali.
Bali tem muitas lojas com gaiolas e passarinhos coloridos.
Eu olho os bichinhos presos e acho triste.
– Imagina se te aprisionam numa gaiola? Você vai gostar?
Hum, espera, aí complica… De que gaiola estamos falando?
Por que se a gente começa a pensar…
Sinto que, de certa forma, passei a vida em “gaiolas”. Criadas por obrigações sociais, da carreira, do mercado de trabalho… Por mim mesmo!
E quem me ensinou que eu deveria me adaptar às “gaiolas” foi a mesma escola que me ensinou que lugar de passarinho é solto na natureza.
Não deixa de ser um paradoxo: liberdade para os pássaros, mas não para nós mesmos… Quem pode se dizer livre de verdade?

Passo por uma loja de passarinhos todas as manhãs aqui em Bali, a caminho da escola dos meus filhos. Um dia, perguntei ao motorista que nos levava:
– Por que, tanto passarinho na gaiola?
– Para competição – respondeu Pak1 Rizky.
Os criadores promovem concursos. O passarinho que canta mais bonito ganha prêmio. A partir dali, vale fortuna.
– Muita gente faz dinheiro nessas competições – explica Pak Rizky. – Nessas e nas brigas de galo.
Brigas de galo?
Pois é. A pacífica e espiritualizada Bali, conhecida como Ilha dos Deuses, tem briga de galo até hoje.
Outro dia escreverei sobre isso. Hoje, ficaremos com os passarinhos.

Esses dois na foto somos eu, aos 4 anos de idade, e meu avô João Casagrande. Os passarinhos na gaiola me fazem lembrar dele.
Vô João tinha no quintal um viveiro de periquitos. Tinha também um barracão com ferramentas. Ele próprio fabricava as arapucas e as gaiolas.
O apego aos passarinhos, ele trouxe do campo. Filho de imigrantes italianos que foram ao Brasil trabalhar no café, vô João nasceu e cresceu em Mogi Guaçu, interior paulista. Trabalhou na roça até os 44 anos de idade.
Foi quando ele chegou no “unsweet spot”, sobre o qual escrevi outro dia.
O ano era 1945. A guerra havia acabado, o preço do café despencava no mercado internacional. Meu avô não conseguia mais manter a família apenas com o trabalho no campo.
Empacotou tudo, fechou a casa na colônia e, com minha avó, seis filhos e três filhas, vô João se mudou para São Paulo. Meu pai, o caçula, tinha 2 anos.
Eu gostava de ver os periquitos no viveiro quando visitava o vô João. Em pouco tempo, porém, começaria a achar aquilo errado.
Professoras, colegas… Todo mundo achava feio. Minha geração cresceu acreditando na liberdade dos passarinhos. Era o que a escola nos ensinava.
Já a gente, era bom se acostumar às “gaiolas”. Era o que a escola nos ensinava.
Eu sei, estou me repetindo aqui. Mas é intencional.
Nunca vou me esquecer da resposta que levei na cara no dia em que contei à professora de Orientação Vocacional que tinha escolhido minha profissão.
– Vou ser escritor.
– Ah, meu filho, você nunca vai sustentar família com essa profissão.
Consegue visualizar a portinha da gaiola fechando sobre a cabeça sonhadora da criança de 12 anos?
O modelo econômico exigia mais passarinhos obedientes, menos passarinhos sonhadores. Estudo, profissão, emprego, casa, carro do ano, pagar conta, boleto, boleto, boleto... Até se aposentar.
O Brasil se industrializava no final da década de 1940, quando meu avô mudou para São Paulo. Para ele, porém, o progresso não foi gentil.
Vô João era agricultor. São Paulo não tinha lavoura. Era analfabeto. O novo mercado de trabalho exigia mão-de-obra especializada.
O ‘unsweet spot’ foi pesado para ele e a história tinha tudo para caminhar na direção de um final trágico. Vô João, porém, não se abateu.
Comprou cavalo, carroça e saiu batendo as ruas da Mooca. Vendia lenha, carvão, frutas… Um pouco de tudo.
Não teve luxo; só deu mesmo para o básico. Teto, roupas, três refeições diárias. Meu pai, meus tios e minhas tias nunca passaram fome.
Vô João nunca ficou rico, mas fez questão de estudar os filhos. Quis que todos aprendessem, pelo menos, a ler e a escrever.
A escola nos encaixava nas gaiolas e a gente se acostumava. Nem era tão difícil. Perdíamos liberdade? Fato.
A conformidade, porém, tinha seus confortos.
Previsibilidade do salário (quase sempre no dia combinado), benefícios sociais, seguro saúde… Mês de férias, 13º salário… E boleto vencendo em dia.
Você precisava ter muita personalidade para resistir aos encantos.
Ninguém te contava, porém, que a segurança desse caminho era ilusória.
Ok, racionalmente, nós sabíamos. Ninguém estava livre de ser demitido. O modelo, porém, vendia uma ideia. Jamais aconteceria com quem se dedicava. Questão de “meritocracia”, sabe? Sei.
Um dia vô João encontrou dois periquitos mortos no viveiro, logo que acordou. Dois corpos sem a cabeça. Coisa de ratazana, meu avô já sabia.
Furioso, ele construiu uma armadilha no barracão e a colocou dentro do viveiro. Aquela ratazana ia aprender uma lição.
A ratoeira capturou o predador vivo dois dias depois.
Meu avô então pegou a armadilha, uma garrafa com gasolina e foi para a praça na frente da vila em que morava.
Encharcou o rato.
Riscou o fósforo.
Tocou fogo e abriu a porta da armadilha.
Meu pai viu o bicho correr em chamas, incapaz de fugir do fogo. Até que parou, morto, e queimou até o fim.
Foi um espetáculo horrível. Para o meu pai, criança; para o meu avô, adulto.
Nenhum dos meus tios cursou ensino superior. A família era unida. Bastava chegar à adolescência, eles e elas começavam a ajudar no orçamento doméstico. Conciliavam trabalho e escola até onde dava.
Meu pai foi para o batente aos 12 anos, numa fábrica de peças de automóveis. Deixou a escola ao fim do Ginásio. Nunca mais deixou o setor de autopeças.
Não lhe agradavam as “gaiolas” da carteira assinada. Construiu “gaiola” própria. Uma loja de acessórios para carros que inagurou em 1965.
O negócio foi bem por 30 anos. Sustentou quatro filhos na educação privada até o ensino superior, conquistou casa própria, casa na praia...
Até a economia brasileira abrir os portos para as importações de automóveis.
O “unsweet spot” do meu pai chegou quando ele tinha 47 anos. O ramo dele começou a morrer. Ele tentou e resistiu aos tropeços por 10 anos. No final, sem energia para recomeçar, abriu a porta da gaiola. Vendeu a loja, passou o ponto e foi morar na praia.
Nas gaiolas da vida, temos lugar enquanto somos úteis. Mas sempre chega o momento em que as portinholas são abertas.
Não é possível generalizar. Nunca é. Talvez não seja assim para todos.
Esta carta, porém, é sobre minha experiência pessoal. Três gerações da família se viram no “unsweet spot” em idades diversas, por motivos diferentes.
Para meu avô, foi a chegada da indústria no Brasil; para meu pai, a globalização da economia; para mim, a revolução digital.
Se não podemos evitar o “unsweet spot”, o jeito é virá-lo a nosso favor.
Deixar a gaiola pode assustar, a princípio. Só é problema, porém, se você estava feliz lá dentro. Eu não estava, não era de hoje.
Ainda estou reaprendendo a voar. Voo escrevendo.
A boa notícia é: sinto-me livre para perseguir o sonho que aquela professora infeliz silenciou, 40 anos atrás.
Sim, outro dia escreverei sobre ela. Sinto que preciso. Não hoje, porém.
E você? Atravessando o “unsweet spot”? Já atravessou? Ou nunca chegou? Conte sua história nos comentários.
Para encerrar…
Vô João sentiu o peso da vingança mal calculada contra a ratazana. Depois daquele episódio, nunca mais fez mal a outro animal.
Continuou criando periquitos, foi um avô amoroso e presente para os netos até morrer, aos 81 anos, em 1982.

E o tio Joaquim, hein? Segue firme e forte aos 84 anos, corpinho de 64.
É raro nos encontrarmos, mas quando acontece, alguém sempre pergunta:
Tio, e aqueles passarinhos de quando você era criança, hein?
Hoje, nos divertimos juntos com o horror estampado no rosto da criançada.
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Atualizações das cartas ao vento.
🌞 O tema da semana passada, sobre onde é o seu lar, tocou corações. Obrigado aos que compartilharam emoções e pensamentos nos comentários.
🌞 Mais uma vez, gratidão às minhas leitoras revisoras, as queridas Lili e Regina, que apontaram pequenos erros do escriba na carta passada. ❤️ Sempre vai ter algum errinho e todos os avisos são bem-vindos!
🤩 Não sei se por mérito do texto, ou por culpa da Julia Roberts, a carta “A Bali que Julia Roberts não viu” segue sendo a mais popular do DESNORTEANDO até o momento.
🌩️ Em Moçambique – eu não desisto –, as manifestações continuam com panelaços diários. A polícia vem reprimindo e perseguindo manifestantes. Pelas contas da Anístia Internacional, 40 pessoas já morreram em confrontos com as tropas, entre elas, 10 crianças. Na mídia brasileira… 💤
🌞 No site do DESNORTEANDO esta semana, o assunto é a Tailândia. Publiquei relatos da nossa rápida passagem por Bangkok. Faça uma visita.
🌞 No dia 25 de outubro, a minha primeira carta foi disparada para 5 assinantes. Esta que você recebe hoje, 34 dias depois, tem 68 destinatários. Quem escreve sabe a importância de leitores interessados. Obrigado pela companhia, gratidão pela ajuda na semeadura das cartas.👇🏼
Pak é uma abreviação de Bapak, que em Bahasa, a língua oficial da Indonésia, quer dizer pai. No dia a dia, é usada como pronome de tratamento respeitoso. Todo homem adulto é pak, toda mulher adulta é Ibu, que quer dizer mãe.
Que significativo você escrever sobre as gaiolas. Eu sinto que vivo a minha hoje, aos 24 anos, que é o receio de investir unicamente na escrita, mas saber que poder viver isso está longe da minha realidade, então me dedico a fazer coisas paralelas, e acho isso meio triste...
Que texto importante. Tantas ideias bem articuladas aqui e que deveriam estar sendo abertamente discutidas em família, nas instituições de ensino. Mas o sistema é cada vez mais essa máquina de moer gente. Às vezes me pego sentindo que não tenho o direito de sofrer quando comparo minha realidade às das gerações passadas. Mas acho que é mais uma das armadilhas desse sistema. Sofrimento não se compara, porque o que determina a intensidade da dor é a capacidade individual de cada um lidar com ela. Não bastassem as gaiolas da sociedade do cansaço, essa telinha brilhante aqui é mais uma delas, talvez a mais paralisante de todas. Mas seguimos. Fiquei feliz de te encontrar. Acabo o texto com a sensação de que fiz um amigo.