#7 Memórias de Natal e a criança que em nós habita
Ilhado em Bali, cercado por imagens hinduístas e abayas muçulmanas, escrevo esta carta. Uma tentativa de evitar que o espírito natalino se afogue nas chuvas torrenciais das monções de dezembro.

Wanna read this in English?
Bali é uma ilha. Uma ilha hinduísta. Faz parte da Indonésia. O maior país islâmico do mundo, com 242 milhões de muçulmanos.
Em Bali chove muito em dezembro. É o auge das Monções. No céu, tudo fica cinza-chumbo; na Terra, tudo fica encharcado. Até a alma.
Chove todos os dias, muitas vezes por dia, algumas vezes torrencialmente.
Ilhado em Bali, cercado por imagens hinduístas e abayas muçulmanas, sob as chuvas torrenciais das monções asiáticas, escrevo esta carta. Uma tentativa de lançar ao espírito natalino uma boia salva-vidas.
Não senti, este ano, a aproximação do Natal.
Não tem festa da firma nos cafés de Ubud; nem árvores iluminadas nas ruas de Bali; nem decoração nas lojas e nas casas.
Os primeiros indícios a me alertarem para a proximidade da maior celebração cristã foram as bordoadas que levei de minhas irmãs e do meu irmão no WhatsApp.
Pois é, acontece com frequência, quando estou do outro lado do mundo nas festas de fim de ano.
Natal, lá em casa, sempre foi uma celebração da família. Cheia de preparativos, combinações… Uma oportunidade para compatilhar as lembranças que acumulamos juntos ao longo de décadas.
Quando não estou por lá para compor o conjunto de memórias coletivas, dá-lhe bordoada no irmão desgarrado.
Na minha infância, Ceia de Natal era na casa da avó, no bairro paulistano da Mooca. Era um grande acontecimento.
A mãe e as tias se reuniam cedo no dia 24. Às vezes já no dia 23, se o Natal naquele ano caísse na segunda-feira.
Enquanto elas ajudavam a avó com os preparativos, os primos brincavam no quintal.
Um baita quintalzão, na minha memória de menino.
Como tinha coisa intrigantes, aquela casa da avó.
Tinha galinheiro, tinha barracão de plantas, tinha pé de goiaba com bicho. O papagaio, todos me diziam, tinha sido falante. Quando eu o conheci, já era mudo. Num dos quartos, um buraco no assoalho de madeira era a entrada para a casa de um monstro. Num canto do quintal, o cimento estufado e quebradiço virava um poço de petróleo.
Era praticamente um parquinho natural, bem raiz. Sem brinquedos projetados, mas nós não precisávamos de nada mais para nos divertirmos.
O cardápio do Natal não era refinado. Tinha o menu clássico. Peru, farofa…
Não podiam faltar, claro, as frutas frescas, as cerejas, as nozes portuguesas. Pêssegos – Natal, para mim, sempre soube a perfume de pêssegos maduros.
O que as crianças mais aguardavam, porém, na tarde do dia 24, era outra coisa.
As filhoses portuguesas.

Preparo do Fermento
Desmanche os ingredientes numa vasilha, misture bem e cubra. Espere por cerca de meia hora, até que o fermento dobre de tamanho.
Filhoses são uma iguaria que a avó trouxe da infância dela, em Portugal.
Uma coisa tão natural na família que fica até difícil explicar. Por muitos anos, eu achava que todo mundo sabia o que eram filhoses.
Igual brigadeiro. Ninguém pergunta o que é, certo? Todo mundo sabe.
Só fui descobrir mais velho que não era assim. Na família, todo mundo sabe. Mas as filhoses não são tão conhecidas, nem mesmo entre portugueses.
Nem de longe se compara à fama universal dos pastéis de nata, por exemplo, que encontro para comprar até mesmo aqui, em Bali.
Ingredientes para a massa
- 1 kg de farinha de trigo
- 6 ovos
- 1/2 xícara (chá) de óleo
- 1 colher (sopa) de sal
Modo de preparar a massa:
Numa vasilha, adicione os ovos, o óleo, o sal e uma xícara (chá) de farinha ao fermento crescido. Misture bem e vá acrescentando a farinha aos poucos, enquanto sova a massa, até que ela atinja uma consistência firme.
Quando terminar de colocar a farinha, faça uma bola de massa, coloque num recipiente com espaço para que cresça, e cubra com um pano de prato. Retire uma bolinha de massa e coloque num copo com água.
Quando a bolinha boiar, a massa está pronta para ser aberta.
Enquanto teve saúde, a avó fazia questão de amassar ela mesma as filhoses.
Ela preparava dois, às vezes três quilos de farinha. Era um esforço enorme para os braços.
Cabelo todo branquinho, amarrado em coque atrás da cabeça, ela suava no calor de dezembro para sovar a massa.
Circulando pela cozinha, as tias e minha mãe tagarelavam e fofocavam enquanto trabalhavam nas receitas.
A vó, não. Era quietinha, não falava mal de ninguém. Já as tias, falavam por ela e pelos cotovelos.
Abertura da massa:
Com as mãos untadas em óleo, separe porções menores da massa e abra com os dedos, até que forme pequenos discos achatados e finos.
Frite os discos em imersão no óleo fervente, até que a massa ganhe um aspecto dourado. Deixe esfriar um pouco sobre papel toalha. Polvilhe açúcar e canela (opcional) e sirva, de preferência, ainda morno.
Depois que a massa crescia, as tias abriam as pequenas porções circulares.
Espalhadas pela enorme mesa da cozinha, sobre uma toalha, os discos de massa continuavam crescendo e se deformavam enquanto uma das tias se encarregava de fritá-los no óleo fervente.

Àquela altura, o cheiro no ar já tinha atraído a criançada para a porta da cozinha.
Era o tempo de esfriar um pouco, as tias passavam um café preto e liberavam a gente para atacar as filhoses polvilhadas com açúcar.
Além da família, a avó mandava pequenos fardos de filhoses para vizinhos e amigos que moravam próximos.
Ainda sobrava um tanto, que a gente comia no café da manhã do dia 25, depois de abrir os presentes que tinha achado debaixo da árvore.
Aqueles aromas, aquela união de todos em torno da tradição, estão entre as lembranças mais vivas que guardo do Natal na infância.
Os anos passaram. A avó vendeu a casa da Mooca.
O Natal mudou para a minha casa e a mãe assumiu o preparo das filhoses quando a avó não tinha mais forças para sovar a massa.
Eu e meus irmãos crescemos, a avó e quase todas as tias se foram. Nossos filhos chegaram.
Tudo mudou, tudo sempre muda. Menos as filhoses.
Depois de um tempo, a mãe começou a desanimar. Eu, minhas irmãs e meu irmão assumimos o preparo no dia 24 de dezembro.
Quando estou pelo Brasil e passamos o Natal juntos, eu sovo a massa. Todos ajudam a abri-la depois que ela cresce. Minha irmã Nancy assume a fritura.
Comemos juntos, ainda quente, reclamando.
Ô troço gordo. Imagina essa fritura toda? E esse açúcar por cima, então? Pelo amor de Deus… É muito trabalho!
Mas, comemos na mesma. Muito mais do que o juízo recomenda.
As novas gerações também adoram e contribuem com inovações no acompanhamento. Queijo cremoso, geléia, pasta de amendoim…
Nesse ponto, sou tradicional. Em questão de filhoses, prefiro com açúcar polvilhado, acompanhadas por uma várias xícaras de café preto.
Exatamente como eu fazia, quando era criança.
Para mim, as filhoses representam uma volta à melhor fase da infância. Um reencontro metafísico com a avó, com quem eu tanto me identificava.
Este ano, não vou comer filhoses. Estou longe demais.
Passaremos o Natal em casa de amigos na Austrália. Não convém fazer tanta sujeira, fritura.
Meu irmão mora na Califórnia. Não vai ao Brasil. Minhas irmãs revoltaram. Não farão as filhoses. Eu me pego pensando:
Não será esse o motivo das bordoadas pelo WhatsApp?
Gosto de pensar que sim. No fundo, elas estão apenas tentando nos punir.
Queriam que eu e meu irmão estivéssemos lá. Fazendo filhoses com elas e com a mãe.
Ajudando-as a reencontrar a criança que habita em cada um de nós.



E você? Tem memórias natalinas que te reconectam com a criança que você nunca deixou de ser?
Entre no espírito natalino, compartilhe uma memória com a nossa comunidade de leitores.
Follow Up Zero
🌩️ A carta da semana passada causou certos desconfortos na família. Filho e esposa não gostaram da exposição. É sempre um dilema para quem escreve: melhor entre pedir autorização antes, ou perdão depois?
🎙️O podcast O Segredo ganhou um segundo episódio, onde revelo como se resolveu a situação narrada na carta passada. Se ainda não ouviu, siga o link.
✍🏼 A ideia de formar um grupo de EscritaViva, lançada na carta da semana retrasada, está ganhando contornos. Temos, no momento, seis interessados em participar. Conhece alguém que escreve e pode se interessar? Compartilhe o DESNORTEANDO.
📚 Por sugestão da querida amiga Marina, leitora e apoiadora desta newsletter desde o número 1, vou indicar por aqui, sempre que possível, livros sobre Bali. Inicio com o clássico A Brief History of Bali, do historiador norte-americano Willard Hanna. Especializado em Sudeste Asiático, Hanna viveu em Bali por muitos anos e este é considerado o livro mais completo sobre a história da ilha.
🌞 Eu tinha decidido que não ficaria mais compartilhando números de assinantes, mas chegamos a um marco esta semana. No momento mesmo em que fechava a carta, atingimos a marca de 100 leitores inscritos. Obrigado a todos os que ajudam compartilhando a carta. 🙏🏼
Podcast#2 - O Segredo de "Meu filho, meus sapatos e as incoerências da vida".
·Foi mesmo uma maldade com leu. O texto caminhava para o fechamento, o leitor queria saber, afinal, como eu lidaria com o clássico teste de limites feito pelo meu filho. No Gran Finale, porém, eu coloquei todo mundo no gancho.
Lembrei do filme que vc fez da nossa avó preparando as filhoses na nossa casa de praia…
Coincidência ou não, hoje cedo comprei os ingredientes pra fazer as filhoses junto com a nossa mãe e as minhas filhas (ainda não tinha lido a sua carta). Será na minha casa de praia, logo depois do Natal, é verdade, mas o que importa mesmo é poder sentir, além do aroma das filhoses, essa criança que me habita e que ama reunir a família, nem que seja pra reclamar dessa coisa gorda e cheia de açúcar.😅
Saudades de vcs! Feliz Natal!🎄
Sim, as bordadas têm razão de ser. Quando juntos, voltamos às crianças que nos habitam e que morrerão conosco! Que bom que lhe damos bordoadas, é sinal de que sentimos a sua falta, de que queremos você junto, porque na pós-modernidade a concepção de família tornou-se algo de "não-junto", de desprendimento, de amigos que se agregaram a nós e fazem o que podem pra preencher o "vazio".
Ler essa carta foi voltar ao tempo, assistir a um filme antigo, trazer a avó e tias de volta... Que lindo!
Feliz e Santo Natal Cristão, meu mano! Te amo e sinto demais a distância.