#20 Memórias que não nos pertencem
Numa caixa no maleiro ela esconde os diários de uma vida. Apenas à espera da hora em que irá chocar os filhos com suas revelações.
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— No dia em que eu morrer, vocês terão uma surpresa!
A frase da mãe, repetida ao longo dos anos, nem precisa de explicação. Nós, os filhos, já sabemos. Sob nossas cabeças paira a ameaça de eternos diários.
Textos nos quais, está subentendido, só há lugar para a verdade. Sem contemporizações, hipocrisias. Sem meias-palavras.
Apenas a insuperável verdade na forma de memórias que ela registra há anos. Memórias que não nos pertencem.
(O que estará eternizado nos diários? A mãe teve lá seus momentos infelizes.
Gosto de acreditar, porém, que o balanço é positivo. Duas filhas, dois filhos, duas netas, seis netos. Todos amorosos, encaminhados. Pessoas boas, capazes de amar e de serem amadas.
O que mais é preciso para o sucesso da existência sobre a Terra?)
Ela jamais nos diz o que esconde nos diários. Jamais revela qualquer passagem. Boas lembranças? Más? Ela desconversa. Faz mistério.
Revelações bombásticas? Escandalosas? No dia em que morrer, saberemos.
Será que tudo não passa de parte do show da mãe, sempre a acreditar que merece mais atenção do que recebe?
Não bastam as ligações quase diárias dos filhos. Nem os cuidados com que a cercamos, especialmente a P., minha irmã mais nova, a filha que mora mais próxima.
Ela nunca está satisfeita. Sofre a melancolia lusitana. Sente-se injustiçada pela vida, que ao seguir seu curso, lhe roubou os quatro rebentos.
— Aqueles sim eram bons tempos, quando vocês todos estavam perto de mim.
Engraçado. Nas memórias de minha infância, ela não parecia assim tão feliz naqueles anos em que nós a atormentávamos diariamente com demandas.
(Tiro os olhos da tela, faço uma pausa, tomo um gole do ‘americano’ que esfria sobre a mesa do café onde escrevo.
Uma cabeça com duas xuquinhas nas laterais surge no meu campo de visão. Corre na minha direção, entra debaixo da mesa.
Eu a espio. É uma bebê, quase. Dois, talvez três anos? Ela leva o indicador aos lábios, pede minha cumplicidade. Logo surge a mãe a procurá-la e compreendo. Brincam de esconde-esconde.
A mãe a vê, mas finge que não. Passeia pelo salão a chamar por ela. Onde estará a bebê? Finalmente a ‘encontra’ e a menininha gargalha.
Será que, daqui a 50 anos, a bebê vai se lembrar desses momentos?)
— Eu e a P. já combinamos: no dia que ela se for, botamos fogo em tudo — avisa N., nossa irmã mais velha.
— Sem sequer abrir um único caderno! — concorda P.
As duas estão decididas há tempos. Mas, e eu? O escritor da família?
Vou aceitar a revolta contra o passado, esse alimento tão rico para a imaginação? Não teria eu a obrigação de reverenciar registros diligentemente feitos por mais de 50 anos?
Mais: e se as histórias forem realmente boas? O que me espera naquelas linhas escritas a mão, em letras perfeitamente desenhadas?
(Sempre teve caligrafia caprichada, a mãe. Algo que sempre invejei. Se não for pelas histórias, talvez eu queira os diários para ver a mudança da letra com a degeneração dos músculos?
Conta uma outra história, essa evolução da escrita à mão.
Sim, estou tergiversando [palavra horrível que insisto em usar, provável herança dos anos como repórter de política, que sei eu?].
Voltemos aos trilhos, a grande dúvida permanece: estou preparado para a verdade com que nos ameaça a mãe?)
Talvez seja a personalidade determinada pelo zodíaco. Pessoas de escorpião. Nunca esquecem. Traições, dores, quebras de confiança. Tudo guardado.
À espera da oportunidade em que serão despejadas no tribunal da vida familiar como provas inegáveis da razão que a mãe sempre pensa ter.
Uma memória privilegiada. Até o dia em que começa a deixar de ser.
(A mudança é sutil. De repente, ela não se queixa mais se deixo de ligar por um ou dois dias. Parece apenas feliz em falar comigo. Será por eu estar do outro lado do mundo?
Não sei. Não me parece normal. Não ouço faz tempo a frase, marca registrada dela, a punir minhas ausências:
— Se eu tivesse morrido, nem do enterro você teria ficado sabendo!
A diminuição da cobrança não combina com a mãe que conheço há 54 anos.
Pouco depois, começam os pequenos sinais complementares.
Uma história repetida em dois telefonemas seguidos pode ser normal. Quando acontece no mesmo telefonema, porém.
Algo, talvez não esteja muito certo. Os antecedentes da família não são bons.)
A primeira foi uma tia dela. Anunciação, lá nos anos 1980. Começou a ter alucinações no meio da noite. Via coelhos no quarto, águias. Logo, não conhecia mais ninguém.
Se fosse hoje, talvez a diagnosticassem com alguma demência. Naquele tempo, porém, chamavam esclerose.
Depois foi a avó, a mãe dela. No fim da vida, ela acabava de comer e já perguntava:
— Então não vamos almoçar hoje?
Também chamaram de esclerose. A memória recente se foi, mas ela morreu antes de deixar de nos conhecer. Jamais viu coelhos e águias, nem esqueceu as histórias da infância dela.
Mais recentemente foi um tio, irmão mais velho da mãe. Agora, já diagnosticado como demência. Ao ponto de não conhecer as pessoas mais próximas, de sair de casa na madrugada e não encontrar o caminho de volta.
(O que nos resta quando não temos mais memória? Quando não sabemos mais quem somos? Deixamos de existir antes da hora final?
A morte da alma. Uma das coisas mais tristes de se ver.)
Com a genética desfavorável, os pequenos lapsos preocupam. P., o anjo sempre por perto, corre a investigar as alterações.
Médicos, exames, prescrições de novos medicamentos. Tudo é encaminhado com o que há de melhor na medicina. E a mãe segue a vida.
Às vezes contrariada com os exercícios na academia para fortalecer músculos e ossos, ou com as aulas de raciocínio que frequenta com outros idosos, uma vez por semana.
— Sua irmã só inventa moda - ela reclama comigo. — Imagina: agora, depois de velha, tive de voltar à escola?
Em outubro, a mãe completa 80 anos.
(Às vezes, ela parece mais confusa, mas tem noção disso. Diz que a cabeça não é a mesma, não guarda informações recentes.
Nos dias bons, que ainda são mais frequentes, ela se vira bem, está bem disposta.
À distância, eu diminuo o intervalo das ligações. Nem sempre temos assunto, mas ligo mesmo assim. Quero que ela me veja, que se sinta querida.
Já marquei passagem para o Brasil em julho. Antes de iniciar o mestrado em Portugal, vou lá ficar um tempo com ela.)
Numa das ligações recentes, eu pergunto pelos diários.
— Estão guardados no maleiro.
A mãe ainda escreve todos os dias? Não, nem todos. Na verdade, faz tempo que não escreve.
— Cansei um pouco — ela explica. — Mas vocês vão ter uma surpresa no dia em que eu morrer.
Precisa esperar morrer? Por que ela não nos dá os diários enquanto está viva?
— Você quer? — ela se anima. — Suas irmãs disseram que não querem nem saber.
Será que quero? Acho que quero. Ela fica toda feliz.
— Eu sempre disse às minhas amigas: quando eu morrer, meu filho vai escrever a história da minha vida.
Citou o dia em que vai morrer duas vezes? Sinal de que estamos num dos dias bons, hoje.
Que texto forte
Ferdinando lamento imenso que sua mãe esteja nesta jornada pessoal.
A sua, talvez, seja escrever como ela. Digo isso com todo respeito.
Não se trata de escrever depois ou antes dela morrer. Mas escrever como ela... seus diários da vida real são maravilhosos. Obrigada por partilhar.