#16 Traições, covardias e as escolhas que fazemos
Exemplos de duas mulheres fundamentais na minha vida me ensinaram: quando o amor acaba, sofrer é inevitável. E o caminho que deixa menos cicatrizes é o da honestidade. Por mais doloroso que pareça.
Eu não queria escrever sobre esse tema. Por isso o ignorei quando ganhou momento nas redes, envolvendo figuras relevantes da cena literária nacional.
Não queria, mas afinal, estou escrevendo. Por quê?
Porque o tema intalou-se no meu pensamento. Uniu-se a antigas memórias escondidas sob o tapete do esquecimento. Arrancou-as de lá.
Deixou-me, portanto, sem escolha.
Esta carta é uma tentativa de expurgar traições e covardias da carga de passivos emocionais que arrasto vida afora.
Como acontece com certa frequência no Substack, contribuiu para a decisão uma frase do Matheus de Souza na newsletter Passageiro, edição “#98 Homens: Leiam Édouard Louis”:
Tenho uma coleção de merdas próprias, das quais não me orgulho. Deixei de fazê-las, porém, há bastante tempo.
Já as merdas dos outros, mesmo as antigas e ressequidas, continuam a me atormentar.
Esse é o assunto de hoje. Merdas masculinas que habitam entres os segredos familiares mais obscuros e bem guardados.
É para dentro dessa caixa de segredos que vou levar vocês com histórias sobre duas das mulheres mais importantes da minha existência que sofreram com traições e covardias de seus companheiros.
Sozinha em sua cadeira de balanço, minha avó chorava silenciosamente. Não uma, ou duas... Foram muitas as vezes em que a encontrei assim. Triste, aparentemente sem razão.
Eu perguntava o motivo das lágrimas. Ela respondia apenas:
– Saudades.
– Saudades de quê?
– De tempos que não voltam mais.
Ela bem velhinha, já; eu, ainda criança. Será que as saudades eram dos campos de cerejeiras onde ela nasceu? Da neve no cume da Serra da Estrela para onde ela jamais voltou?
Curioso. Ela sempre me contava histórias de Portugal. Nunca chorava, porém, quando recordava a infância.
Só muitos anos depois fui descobrir o verdadeiro motivo de tantas lágrimas.
Morávamos num sobrado geminado nas proximidades do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Eu devia ter uns 5, no máximo 6 anos. Talvez menos. Havia acabado de subir as escadas e quando apontei na entrada do quarto que dividia com minhas irmãs e meu irmão, vi minha mãe sentada numa das camas, de costas para a porta.
– Por que você está chorando?
Ela se surpreendeu com minha presença. Apressou-se em engolir o choro, enxugou as lágrimas com a parte inferior das palmas das mãos. Abraçou-me e tentou me tranquilizar com a única resposta verdadeira possível sem compartilhar detalhes que criança não precisa ouvir.
– Não é nada. Mamãe só está um pouquinho triste.
Eu era bem pequeno, mas a imagem da mãe chorando ficou na memória.
Minha avó esperava o segundo (ou seria o terceiro?) filho quando descobriu. Meu avô tinha uma amante.
Estamos no final da década de 1920. Um século atrás. Mulheres tinham ainda menos voz e direitos do que hoje. Mesmo assim, ela reuniu forças para confrontar o marido.
Ferdinando – sim, foi dele que herdei o nome – não tentou negar. Admitiu a traição com naturalidade, como se fosse direito dele ter uma amante.
A avó ameaçou. Sairia de casa se ele não deixasse a outra. Voltaria para Araraquara, onde vivia a família dela. Levaria as crianças.
O avô escarneceu. Naqueles tempos, mulher separada não tinha acolhimento nem na própria família. Ela que fosse embora. Ele ficaria com as crianças e ela acabaria na rua, sozinha.
Sem alternativas, a avó se resignou. Viveu sob o mesmo teto, dividiu a cama com o marido infiel. Teve mais oito (ou seriam 7?) filhos depois daquilo.
Meu pai era um mulherengo incorrigível. Não sei o quanto a mãe sabia, o quanto ela apenas desconfiava… O fato é que a energia predominante daquele casamento, na minha infância, era a discórdia.
Lembro-me como me afligiam as discussões e brigas entre eles todas as noites, quando ele chegava em casa perto das 9 horas, embora tivesse saído do trabalho às 6h30.
Eu tinha medo de que eles se separassem. O que seria de mim e dos meus irmãos se o pai fosse embora de casa?
Anos depois a mãe nos contou. Um dia, incapaz de conviver com aquele sofrimento, propôs a separação. Ele não aceitou.
– De jeito nenhum. O que a sua mãe e os meus pais vão pensar?
Não sei se foi exatamente assim. Essa é a versão da mãe, que tem lá as suas mágoas a pautar a lembrança e, num certo sentido, não deixa de ser uma escritora frustrada. Criativa que só…
Alguma semelhança com a verdade, porém, deve existir. Não consigo deixar de notar: não foi o amor, nem por ela, nem pelos quatro filhos. O que o manteve no casamento foram as aparências.
O avô Ferdinando morreu subitamente, aos 55 anos de idade. Minha mãe tinha só 9 anos.
Ele deixou a avó com uma família por terminar de criar; deixou também uma amante argentina. Os dois filhos homens dele, meus tios – então com 23 e 21 anos de idade –, a conheciam bem. Até tentaram convencer a avó a deixar que a argentina fosse ao velório. Ela não aceitou.
As tias mais velhas também sabiam, mas sempre passaram pano. Vendiam a imagem idealizada de pai perfeito, de quem tinham saudades genuínas.
Sempre que minha mãe insinuava crítica ao comportamento dele, a tia mais velha saía em defesa:
– Nunca deixou faltar nada em casa.
É, só faltou mesmo o amor. Mais nada.
Eu e meus irmãos só fomos saber detalhes da história triste da avó há uns 10 anos, quando minha mãe descobriu: meu pai também tinha amante.
Foi um escândalo familiar. Como havia acontecido com o avô materno, o pai também não negou o malfeito. Não quis dizer desde quando, mas aparentemente era coisa antiga.
Ele tentou acalmar a mãe, não queria se separar naquela altura da vida. Em determinado momento, saiu-se com esta:
– Seu pai sempre teve amante e sua mãe se conformou.
A avó não teve escolha. A mãe teve. Escolheu não se conformar.
Aos 70 anos de idade, pediu divórcio do único homem que teve ao longo da vida. Mudou-se de cidade. Foi morar sozinha, perto de uma das minhas irmãs.
Eu não tenho raiva do avô Ferdinando. Não posso nutrir sentimentos, negativos ou positivos, por alguém que não conheci.
Também não tenho raiva do pai. Sinto pelo que aconteceu à mãe, mas tento separar o péssimo marido do bom pai que ele foi, pelo menos para mim.
(Meu irmão tem visão diferente sobre o final da frase acima, mas assim são as memórias afetivas. Pessoais e intransferíveis.)
Não que ele tenha acertado sempre, veja bem. Também sou pai hoje. Sei como é difícil acertar.
Como maridos, porém, tanto o avô quanto o pai erraram feio. Foram covardes. É um fato indiscutível, não um julgamento.
Não escrevo aqui para julgar os outros. Também já estive lá. Num casamento que durou mais do que o amor.
Não me orgulho de contar. Também fui, sim, covarde. Pelo menos num primeiro momento, não tive coragem de enfrentar a separação quando já sabia que seria inevitável.
Tentei levar. Não é fácil ser vilão na vida de alguém. Destruir sonhos, planos, idealizações. Deixei correr.
Até o dia em que enxerguei para onde a omissão me levaria: seguiria nos passos do avô que era meu xará? Caminharia nas pegadas do meu pai?
Eu tinha escolha? Sim, nós sempre temos escolha.
Eu tinha mais. Um exemplo, na família, de como pode ser feliz um casamento.

É até curioso falar novamente do meu avô paterno, João Casagrande. Eu tinha apenas 11 anos quando ele morreu. Convivemos pouco. Mesmo assim, ele já foi tema de outra carta minha, uma das mais lidas do DESNORTEANDO.
Sei muito pouco sobre a postura dele como marido, ou mesmo como pai. Não tenho ilusões de que fosse avançado nas ideias sobre relações de gênero. Seria ingenuidade esperar isso de um homem formado pelo patriarcado no início do século 20.
A forma como tudo terminou, porém, a saudade que ele deixou ao partir… Talvez, ele tenha sido diferente? Um marido à frente de sua época?
Não sei. Pode ser apenas ingenuidade minha. Sinto, porém, que no casamento dos meus avós paternos, a energia predominante era a felicidade.
Vô João morreu no início de dezembro, em 1982. Tinha 81 anos.
Foi um fim de ano péssimo. Sem a tradicional festa de réveillon na casa dele, com baile e sanfoneiro; sem as mesas fartas de comida simples e saborosa; sem o discurso da meia-noite, que ele fazia em cima de um banquinho.
A avó entrou em luto profundo. Eles haviam vivido 58 anos juntos. Tios e tias, meu pai, fizeram o possível para ajudá-la a esquecer. Temporadas nas casas deles, com os netos; uma nova casa para ela, livre das lembranças; uma cuidadora para fazer companhia 24 horas por dia.
Não se esquece uma vida interia assim, tão fácil.
No aniversário de um ano da morte do avô, a cuidadora preparava o café da manhã quando a avó chegou à cozinha, sentou-se à mesa e suspirou:
– Um ano hoje…
– Um ano do quê, vó? – perguntou a cuidadora.
– Um ano que meu velho morreu.
Foi a última frase dela antes de sofrer um AVC.
Morreu uma semana depois. De saudade do amor da vida dela.
Talvez a mente criativa de escritor tenha idealizado essa história? É possível.
Idealizada ou não, ela foi determinante na formação dos meus valores. Eu queria para mim um relacionamento com aquele espírito de comunhão. Não uma vida conjugal construída e mantida por aparências.
Por isso, quando a bússula do coração perdeu o norte, decidi pelo divórcio.
Fui pioneiro, na família. O primeiro a trilhar esse caminho. O pai mulherengo chorou quando contei a ele. Duvido que tenha entendido a participação que teve, indiretamente, nessa escolha.
Não quero criar aqui uma falsa imagem de heroísmo. Demorei a criar coragem para revelar que não estava feliz. Foi tudo muito triste, muito pesado. Mesmo com o longo processo teraupêutico em que mergulhei, carreguei por muitos anos esse luto.
Não foi fácil. Nunca é. Quando o amor acaba, o sofrimento é inevitável. Aprendi com a vida, porém, que o caminho da honestidade deixa menos cicatrizes. Por mais doloroso que seja.
Essas reflexões e as traições e covardias que agitaram o mundo virtual nas semanas anteriores me inspiraram a escrever uma crônica. O título é Covardia.
Ou será um conto? Sempre me confundo entre os dois gêneros.
Enfim, é uma peça de ficção. Será que a publico aqui? Interessa aos leitores?Alguém opina para me ajudar com essa decisão?
Follow up Zero
🌞 Depois de circular sozinho por Bangkok, Luca fez sua primeira balada e dormiu fora de casa no fim de semana. Tudo correu bem. O menino voltou inteiro no dia seguinte.
☁️ Várias mães reagiram à carta da semana passada, mas achei curioso nenhum pai ter se manifestado… Será que pais, em geral, delegam às mães a preocupação com a autonomia dos adolescentes?
📚 A indicação de livro sobre Bali, hoje, foge dos gêneros reportagem e romance e entra na àrea acadêmica. Escrito pelo australiano Adrian Vickers, professor de Estudos do Sudeste Asiático na Universidade de Sidney, Bali: A Paradise Created se propõe a entender o que torna esta ilha tão especial e como o povo balinês consegue preservar a identidade cultural após um século de pressões da cultura ocidental.
Ferdinando. Bom dia.
Uma frase me marcou nesse teu texto: "Ele nunca deixou faltar nada".
Essa frase era dita aos borbotões por todas as irmãs da minha mãe e até por ela própria quando definiam seus maridos. O que me faz pensar o seguinte:
Estamos como filhos e homens presos numa estrutura hereditária que se impõe pela palavra como forma de doutrinação ou em alguns casos pela violência. E uma violência que perdura por anos. Eu flagrei meu pai dentro do escritório que trabalhava com uma colega de trabalho. Quando eu confrontei-o, na frente de minha mãe (como todas as vezes que fiz) eu tomava obrigatoriamente um tapa na cara ou apanhava de cinta.
Em todas as vezes depois de algumas semanas, minha mãe (com toda a delicadeza e amor desse mundo) me dizia que não devera ficar triste por apanhar pois meu pai nunca deixou faltar nada em casa.
Somos criados como pessoas através dessa estrutura. Nossa cognição é construída dentro de uma distopia que e vendida como verdade. Agradeço teu compartilhar, pois penso que se conversa muito pouco sobre a semiótica da estrutura que nos constrói como indivíduos dentro do grupo. Muito se fala em desconstrução em mesas redondas com homens de mocassim sem meia, mas ninguém dialoga com a ruptura, muito menos com discussão da construção de gerações e gerações.
Ferdi nu com um teclado na mão..hahaha...desculpe a imagem, mas textos de valor testemunhal podem provocar isso nos leitores, fique sabendo. Vcs homens são engraçados e difíceis. Relutam em mergulhar nos próprios sentimentos e preferem muitas vezes a segurança das bordas e superfícies. Nos vendem que isso não é coisa de menino. E assim se lançam em protocolos difíceis de uma vida a dois, porto seguro para corações inseguros. Triste ilusão. Tristes desilusões. Óbvio, esse é o olhar de uma mulher e no caso, de quem já sofreu a morte violenta de uma traição. Amar profundamente a si mesmo e ao outro é a única vacina potente contra as doenças do coração. Corações alheios, nossos filhos e próximas gerações agradecem a imunização que não consta em nenhum serviço de saúde, mas nas palavras de um ser estranho que por aqui passou dois mil atrás, sim. Beijo estalado, Ferdi.