#18 Minha forma de navegar o mundo
A carta de motivação que escrevi para me candidatar a uma posição, mas que jamais enviei. Qual posição? Ah, não vou dar spoiler da revelação que está lá no final!
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Quem me lê há algum tempo há de estranhar a repetição neste texto de histórias aqui já relatadas. Sim, estou a falar da Dona Terezinha.
Acontece porque a carta a seguir não foi escrita para ser publicada. Mas, como acabou por não ser enviada, mudei de ideia.
Por isso, peço compreensão. Não me abandone.
Será a última aparição dela, espero. Quem não soltar a minha mão até o final do texto entenderá o por quê.
Bali, 27 de março de 2025.
Candidato: Ferdinando dos Santos Casagrande.
Aos prezados integrantes da Comissão de Avaliação,
Em 54 anos, foram muitas vidas. A alinhavá-las, um chamado: a escrita. Chamado que, até hoje, só atendi por vias tortuosas. Parcialmente.
Esta é, portanto, a motivação primordial: a vocação a me acompanhar desde a primeira vez em que frases e parágrafos bem construídos me transportaram ao maravilhoso mundo construído na imaginação.
Aos 12 anos, com a ingenuidade permitida apenas às crianças, já estava decidido. Seria escritor. Futuro traçado — não fosse a infeliz intervenção da professora de orientação vocacional:
— Ah, meu filho. Você nunca vai sustentar uma família com essa profissão.
A pedra, colocada cirurgicamente no caminho a bloquear o sonho de viver da imaginação. Eu queria escrever, mas era preciso pagar boletos.
Ali terminava a ingenuidade — e começava o desvio. Com a bússola desorientada da vocação, enveredei por rota alternativa. O jornalismo.
Nas redações, escrita virou ferramenta. Objetividade. Clareza. Concisão. Sem repetições. Sem “ques”. Sem excessos. Aprendi, dominei a habilidade nova.
Encantou de princípio, mas, com o passar dos anos ficou claro, não bastava.
Permaneciam latentes o desejo pela imaginação, a necessidade de explorar subjetividades, afetos, dúvidas.
Afinal, quem tem tantas certezas?
Se não havia espaço na imprensa, os blogs pessoais bastariam? Nasceram dois projetos.
A Casa da Lagoa, nos anos em que vivi no Rio de Janeiro; a Casa de Luanda, quando me mudei para a capital angolana.
Experimentei a escrita sensível, moldada pela escuta, pela memória, pela observação poética do cotidiano. Experimentação mas, novamente, paliativo.
Quando parti para Nova York com dois filhos pequenos, blogs já não bastavam.
Nos Estados Unidos criei coragem. Buscar o desejo, quase obsessão, de publicar um livro, essa representação física do ingresso no mundo literário.
Levou dois anos para ficar pronto, venceu o Prêmio Livro-Reportagem Amazon, em 2019. Foi publicado pela Editora Record.
Com a improvável biografia de um jornal extinto, espiei da porta o reino da Literatura. Mas, não foi dessa vez, ainda, que me senti confortável no templo.
Como assim? Quantas pessoas realizam esse sonho? Quantas, ainda por cima, são premiadas na estreia? Certamente, deveria me considerar realizado.
Deveria, mas, e depois? Era só isso?
No dia seguinte, lá estavam as perguntas a me encarar no espelho onde evitamos a passagem do tempo todas as manhãs.
Só então compreendi: busco a escrita da emoção. Camadas, silêncios, subtextos. Escrita que pulsa, desperta, encanta.
Transforma. Quem escreve, quem lê.
Não, eu não estava realizado. Meu próximo livro teria de ser ficção.
Levantei as velas de uma novela. Experimentei a fusão entre linguagem jornalística, pesquisa documental e criação literária.
Era um mundo desconhecido. Logo ficou claro. Eu precisava de nova bússola, ajustada para o oceano ficcional.
Em 2024, mudei-me para Bali.
Na Indonésia cheguei sem emprego, sem horizonte de futuro, assustado com a obsolescência a bater à porta.
Agarrei o chamado para a escrita como cura, resgate da memória. Antídoto à banalização das emoções no mundo digital. Criei o DESNORTEANDO.
Foi uma maneira de me reencontrar com o sonho original, com aquele menino que tinha ficado esquecido, mas que jamais deixou de existir.
O que me traz de volta à busca pelo mestrado em Escrita Criativa.
Durante o mestrado, pretendo desenvolver um projeto de ficção narrativa sobre a angústia digital - pandemia silenciosa que ameaça nos destruir antes do aquecimento global - e a memória humana como antídoto a ela.
Amparado na excelência da Universidade de Coimbra, quero compartilhar a bagagem que trago e adquirir, com professores e colegas, competências avançadas e conhecimento crítico necessários na construção da nova bússola.
O norte que me ajudará a navegar o oceano da ficção e a evitar os rochedos da obsolescência, consciente de que, mais que destino, a escrita é meu modo de navegar o mundo.
Com os melhores cumprimentos,
Ferdinando Casagrande
Essa era a carta de motivação para a próxima etapa da vida, que contemplei antes de sair do Brasil e que amadureceu em Bali.
Uma volta à escola, 33 anos depois. Um mestrado para basear em conhecimento a escrita desde sempre intuitiva.
Um realinhamento com meu verdadeiro EU.
A carta, porém, jamais foi enviada. Sim, são muitas as pedras no caminho.
Matou-a um pequenino cascalho. O aviso de sistema no momento de apertar o botão de envio.
O arquivo não deveria exceder o tamanho de uma página em formato A4. E a carta, como você acabou de ver, era muito maior.
Por isso esse texto jamais chegou aos avaliadores em Coimbra.
A candidatura, porém, seguiu. Com versão menor da carta. Menos inspirada, mais burocrática.
Rendeu-me 15, dos 20 pontos possíveis, e recebi como resposta:
“A carta de motivação faz referência ao percurso profissional do candidato enquanto jornalista, sublinhando o seu desejo de desenvolver competências de ficcionalização narrativa. Embora sem aprofundar a reflexão, mostra consciência das diferentes técnicas e modalidades da escrita.”
Somaram-se a ela as notas do Bacharelado em Comunicação Social (17, de 20 pontos) e da amostra de produção ficcional (15, de 20 pontos):
“(…) o primeiro capítulo de um livro em desenvolvimento intitulado ‘A Casa do Alto da Colina’ (…) demonstra capacidade de ficcionalização e algum domínio técnico na construção de espaços, tempos, perspetivas e diálogos”.
Assim termina a carta de hoje.
Com o início de um novo capítulo na minha história pessoal: a aprovação da candidatura ao Mestrado em Escrita Criativa em Portugal.
Adeus, dona Terezinha. Nos vemos em Coimbra.
Essa é a prova de que a Dona T., por bem ou mal, impulsionou muito! kkk
Amei!!! Vai com tudo, mano! E solte esse menino aprisionado para o mudo da escrita!