#9 Como aprendi a sentir a palavra saudade
A vida é feita de encontros que mudam e redefinem nossa trajetória. Minha paixão pelas histórias começou assim. Depois de um encontro muito especial.

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No banco do jardim ela tomava sol. Bengala ao lado, rosário na mão, ela não rezava naquele instante. Estava ocupada em recompensar minha companhia com histórias sobre a infância na Serra da Estrela.
Cerejas no pé, a neve branca como açúcar que ela levava à boca para saber se era doce. Que gosto tinha a neve? Minha avó ria da minha dúvida.
A carta de hoje é inspirada no tema de uma newsletter que encontrei no Substack. Os textos de Encontros Transformadores são escritos por Enor Paiano, que foi meu professor no curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Enor explicou, em resposta a comentário que fiz lá, o objetivo do projeto dele:
Comigo, Enor alcançou o objetivo. Bastou ler os textos dele para me lembrar de vários encontros que influenciaram minha trajetória.
Como na semana passada eu expus um lado triste da minha avó materna, resolvi escrever hoje sobre como nosso encontro me despertou para o poder das histórias bem contadas.
São Paulo não tinha neve, nem cerejeiras. De vez em quando, algumas estrelas, se a fumaça permitisse. Nada de serras ao alcance da janela.
Só o cimento gasto do imenso quintal da casa em que ela morava, no bairro da Mooca; os quartos rangendo assoalhos de madeira; o cheiro de creolina no ar; as roseiras do jardim que destruíamos com o futebol entre primos.
Nas histórias de minha avó, porém, eu viajava longe. Para um Portugal rural cheio de simplicidades enigmáticas como a neve no parapeito da janela.
Fazia muito frio? Como era sentir tanto frio assim? Ela ria das minhas perguntas de criança e contava tudo de novo.
Eu tinha uma ligação muito forte com essa avó. Ainda pequeno, dormia com frequência na casa dela nos fins de semana.
Depois que ela se mudou para perto da minha casa, passei praticamente a morar com ela. Dormia todas as noites no quarto de hóspedes. Os primos maldosamente chamavam de “quarto do Ferdinando”.
Éramos muito próximos, mesmo, eu e a avó.
Por isso, nas minhas primeiras tentativas de escrita, ainda jovem, registrei lembranças dela que habitavam minha memória.
Os trechos em negrito são excertos daqueles textos jamais publicados.
A cozinha era o lugar mais aquecido nas tardes de sábado, quando ela assava bolos formidáveis. Mesa repleta de ingredientes, batedeira a gritar farinhas e ovos pelas pás agitadas e barulhentas, eu circulava ao redor à guisa de ajudante.
As histórias que ouvia, então, eram outras. Cheias de xícaras e claras em neve, colheres de açúcar e medidas de afeto.
Eu fingia aprender tudo, mas esperava mesmo era a raspança de vasilhas depois que a mistura era deitada às formas.
Aquelas tardes lambuzadas dentro de tigelas e assadeiras sempre estiveram, sempre estarão entre as minhas lembranças mais felizes da infância.
São fragmentos, apenas. Pequenas homenagens à primeira pessoa a me mostrar a magia da história bem contada.
Só depois viriam os livros, com a magia da história escrita.
Não sei o que pretendia quando registrei essas lembranças. Ela já tinha morrido e talvez eu buscasse uma forma de preservá-la? Ou esperava aplacar a saudade que eu sentia da infância na casa dela?
Não sei. Os escritos, porém, não sossegaram o espírito. Em 2004, decidi trilhar a viagem que a avó jamais foi capaz de fazer.
O regresso à Avelãs de Ambom, a aldeia em que ela nasceu.

A lua cheia ilumina o céu da Guarda na última noite que durmo com meus sonhos de criança, fantasias construídas sobre as histórias de minha avó.
Tantas vezes ela me contou sobre a aldeia, suas ruas irregulares, as casas de pedras escuras, os pomares cheios de aromas, a neve no beiral da janela…
Avelãs de Ambom existe de maneira muito concreta na minha imaginação.
Quantas vezes eu subi o escadario de pedras que ela dizia existir na entrada da casa em que nasceu; quantas vezes estiquei a mão para aparar a neve e levá-la a boca, como ela fazia; quantas vezes contemplei a imaginária Serra da Estrela no horizonte de arranha-céus de São Paulo.
Nesta noite, sob a lua cheia da Guarda, temo o que encontrarei amanhã.
Avelãs de Ambom existe de maneira muito concreta no alto de uma colina, no distrito da Guarda.
Uma outra Avelãs de Ambom, não a da minha imaginação. Nem mesmo aquela em que minha avó nasceu.
Só agora percebo o erro que cometo.
Encontrarei a casa de pedra? Vale a pena encontrá-la?
Fui sozinho buscar as origens, naquela viagem de 2004. O texto acima foi escrito na véspera da visita à aldeia, no diário que carregava comigo. Na volta, foi parar no álbum de fotografias que montei.
Encantou a audiência da época em que não existiam Instagram nem Facebook: mãe, tias, primos e primas, irmãs, irmão.
Inspirou alguns deles a também cruzar o Atlântico para conhecer Avelãs de Ambom com os próprios olhos.
E a casa de pedra? A casa em que ela nasceu?
Voltei a caminhar já sem esperanças. O que levaria ao Brasil daquela visita?
Absorto na dúvida, entrei por uma viela sem sentindo, atraído por não sei quê. Umas florezinhas amarelas num canto de muro.
Parei a fotografá-las, bati duas fotos, morreu-me a bateria. Virei-me contrariado, já disposto a partir, quando então percebi.
Estava bem ali. Atrás de um portão de ferro negro que abria no muro de pedras uma janela para o passado.
Era exatamente como eu a imaginava, como ela a descrevia.
A escada por fora, subindo ao andar superior. As janelas dos quartos apontadas para a Serra da Estrela. No pátio à frente, um barracão encostado no limite do terreno. Não havia galinhas, nem cabras. Nem gente na casa que eu tinha a certeza de ter sido da minha avó.
Nunca tive certeza. Não pude, sequer, trazer uma fotografia. A câmera estava sem bateria e os celulares, na época, não fotografavam.
Cada um que lá esteve depois de mim - uma das irmãs, a mãe – encontrou uma casa diferente que pode ter sido da avó.
Todos, porém, sem a certeza.
Em junho de 2024, na viagem a caminho do Oriente, resolvi tentar mais uma vez. Agora, com a ajuda de meus filhos, Luca e Caio.








Foi bonito ver o empenho dos meninos em encontrar a casa, a partir das descrições que eu reproduzi a eles. Uma tarefa difícil, porém.
As moradas todas se parecem. Gente daquele tempo, não sobrou ninguém.
Sobre a segunda visita, não havia escrito palavra até hoje. Deixei a emoção do encontro se manifestar pela arte de Caio.
Vó, eu não sei mais se acredito no Deus em que você depositava tanta fé.
Você, porém, acreditava. Em Deus, na vida após a morte. Então, deve estar em algum lugar, ouvindo meus pensamentos, vendo o legado que deixou.
Onde quer você esteja, eu sei. Você gostou do pequeno concerto que seu bisneto tocou para o padre e as velhinhas da sua aldeia.
Foi na praça central, ao lado mesmo da igreja onde você foi batizada e onde aprendeu as orações que me ensinou quando eu era pequeno.
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🖊️ Não deixa de parecer trocadilho, mas finalmente reuni coragem para publicar Covardia, minha primeira crônica de ficção, inspirada nas traições masculinas ventiladas nas redes. Não chamei na home do DESNORTEANDO, não anunciei no digiverso. O único caminho para encontrá-la é o link acima. Coisa de escritor tímido.
🌞 A autópsia de mentiras masculinas nos segredos familiares, tema da carta da semana passada, atraiu espantoso interesse. No fechamento desta edição, ontem à noite, sem que eu a tivesse anunciado no Instagram, a carta já se credenciava para ser a mais lida da história do DESNORTEANDO. Estava ligeiramente atrás de “#13 Você é uma pessoa feliz?”, que ganhou tração graças ao gentil compartilhamento feito pela
, a quem agradeço de coração.♥️ Preciso agradecer, também, o depoimento carinhoso da Lidice nos comentários dessa mesma carta. Leitora desde os primórdios, ela aquece o coração com palavras que alimentam a coragem para continuar escrevendo e compartilhando.
👨🏼⚕️Agora é oficial: voltei para a terapia. O que significa que o tom das cartas futuras deve melhorar!
Ferdinando, boa tarde.
Repostei o texto antes de terminá-lo, terminei-o com olhos marejados. Muito obrigado pelo relato.
Que demais Ferdi texto sensacional!!!! Tenho certeza que a história vai corrigir o erro de dar pouca importância a influência dos avós!!!