[Mundo Afora #6] Você é uma pessoa feliz?
Despertado pelo Azan muçulmano e inspirado pela newsletter de uma escritora da nova geração da literatura nacional, crio coragem para revelar minha resposta a essa pergunta incômoda.
Wanna read this in English?
– Allahu Akbar. Allahu Akbar. Allahu Akbar. Allahu Akbar.
O chamado do muezin me acorda às 6 horas. Estou em Kuala Lumpur, capital da Malásia. Ainda está escuro lá fora.
– Ash-hadu an-la ilaha illallah. Ash-hadu an-la ilaha illallah.
O canto emitido pelos alto-falantes dos minaretes ecoa nos vãos dos modernos arranha-céus. Kuala Lumpur tem muitas mesquistas. O Islamismo é religião oficial na Malásia.
– Ash-hadu anna Muhammad Rasulullah. Ash-hadu anna Muhammad Rasulullah.
Eu sento na cama, mas não rezo. Nem para Alá, nem para nenhum Deus. Pelo menos, não com a fé que eu gostaria de ter.
Acredite, é preciso coragem para admitir publicamente. Essa e tantas outras verdades incômodas que habitam meu arquivo de rascunhos inéditos.
Fui buscar a carta desta semana no arquivo dos rascunhos. O texto existe há pelo menos seis meses. Foi escrito logo que cheguei em Bali, mas ficou guardado. Faltou coragem para publicar.
O que inspirou a mudança de disposição foi uma leitura. Viver não tem lógica, primeira newsletter publicada pela
em 2025.O tema não está exatamente ligado ao desta carta. Uma frase no parágrafo de abertura, porém, ativou minha coragem.
E não é que não esteja feliz – os últimos anos têm sido os mais felizes da minha vida até aqui.
O texto que eu vinha escondendo versa, exatamente, sobre felicidade. Nasceu numa manhã qualquer, quando a pergunta do título desta newsletter cruzou o meu caminho.
Refletindo mais tarde, conclui que a pergunta estava à espreita havia muito. Talvez, sempre tenha estado lá, gritando no espelho em que a gente se recusa a ver a passagem do tempo todas as manhãs.
O fato é que ela, a pergunta, ganhou momento naquela manhã ensolarada a partir da observação e comparação entre duas pessoas.
Uma delas, eu encontrava com frequência no caminho que repitia quase todos os dias. Era um trabalhador por quem passava. Eu o cumprimentava, ele me respondia. Sempre muito respeitoso, educado…
Algo ali, porém, era diferente.
Desde o primeiro dia em que o vi, eu senti a energia. Destoava da maioria dos balineses, com seus sorrisos luminosos, bondade emanando ao redor.
Esse homem não era assim. Estava sempre fechado. Carregado.
Aquele homem, definitivamente, não era feliz.
O pensamento me ocorreu e, imediatamente, me remeteu à outra referência que eu havia tido no dia anterior.
Uma criança, uns 10 anos de idade, amiga de um dos meus filhos.
Ela não é balinesa. Talvez ela nem saiba dizer exatamente de onde é.
Os pais nasceram em países diferentes, os irmãos também… Em Bali aprendi que não se pergunta de onde o expatriado é, mas sim aonde é o lar para ele.
Não perguntei, mas tenho certeza: Bali é o lar dela. Não me lembro da última vez que vi uma criança tão sorridente e tão feliz depois da primeira infância.
A comparação entre a criança feliz e o homem triste me levou, forçosamente, a olhar para dentro.
– E você, é uma pessoa feliz?
A pergunta cruzou meu pensamento exatamente dessa maneira. Na terceira pessoa, como se fosse formulada por alguém de fora.
Todos nós temos momentos felizes, momentos tristes. É parte da vida.
De maneira geral, porém: onde eu me situaria na escala entre a criança feliz e o homem triste?
A resposta não me agrada. Por isso este texto passou tanto tempo escondido.
Ao contrário da Fabiane Guimarães, vejo-me, claramente, mais próximo do homem infeliz.
Com todos os motivos que tenho para ser feliz – família, filhos, vida confortável, privilegiada –, não posso dizer, hoje, que a energia que emano no mundo seja mais próxima à da pequena Poliana.
Ok, admito a enrolação dos dois parágrafos anteriores.
Duas frases e 39 palavras para amenizar a verdade incômoda que caberia em apenas 4 palavras. Nem preciso escrever aqui, né?
Eu não sou feliz. Pronto, materializei.
O que não quer dizer que eu seja triste. Ninguém é só uma coisa o tempo todo. Às vezes sinto tristeza, às vezes sinto felicidade.
Como via de regra, porém, a emoção que carrego no dia a dia é a insatisfação.
É isso. Sou um eterno insatisfeito.
Eu poderia culpar o ‘unsweet spot’ que citei numa das primeiras cartas do DESNORTEANDO, ou mesmo uma série de outros fatores externos.
A melancolia da herança lusitana, o ceticismo, a falta de fé na humanidade, a criticidade tóxica de três décadas dedicadas ao Jornalismo…
Até as redes sociais têm lugar nessa longa lista, mas não basta.
Assim como os fatores positivos externos não bastam para a felicidade, os negativos não são os únicos culpados pela ausência dela.
É preciso procurar dentro – e não fora da gente – as razões para sofrer, ou para sorrir.

O sol começa a iluminar o céu no horizonte entercortado pelos edifícios de Kuala Lumpur.
– Haya 'alas-salah. Haya 'alas-salah.
Nos primeiros seis meses em Bali, aprendi que a energia que emanamos determina a impressão que deixamos nas pessoas e no mundo.
– Haya 'alal-falah. Haya 'alal-falah.
Hoje, identifico de forma consciente como a energia das pessoas à minha volta me afeta. Como a minha energia afeta meus filhos e minha companheira.
– Allahu Akbar. Allahu Akbar.
O muezin vai terminando o Azan. Sentado na cama, eu procuro coragem.
– La ilaha illallah.1
Não é fácil, mas está na hora. De publicar esse texto e de voltar para a terapia.





Fabiane Guimarães, que inadvertidamente me inspirou coragem para falar sobre felicidade, é uma voz feminina marcante na nova geração da literatura nacional. Autora de Apague a Luz se for Chorar e Como se Fosse um Monstro.
A newsletter dela é uma leitura inspiradora para quem escreve:
Follow Up Zero
☁️ No afã de demonstrar o raciocínio sobre a tristeza do fim da vida, cometi uma injustiça na carta da semana passada. Uma das pessoas próximas que partiram em 2024, embora não tenha deixado um legado ético que se possa considerar exemplar, deixou um legado humano maravilhoso: duas filhas, cinco netos e oito bisnetos – família da qual tenho o privilégio de fazer parte hoje.
🌞 O DESNORTEANDO foi citado na newsletter do
que fala sobre a corrente filosófica do Estoicismo. Agradeço de coração pela honra e retribuo a gentileza.📚 A indicação de leitura sobre Bali, hoje, é The Painted Alphabet: A mythical story of Bali, da escritora norte-americana Diana Darling. Moradora de Ubud desde os anos 1980, Diana usou um poema balinês ancestral para criar este romance fantástico em que bruxos, turistas e animais falantes coexistem nas ruas da ilha.
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#12 E se você só tivesse mais 362 dias pela frente?
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#1 Da baciada de notícias na África ao DESNORTEANDO na Indonésia
Eu tinha 34 anos de idade na primeira vez em que desnorteei. Havia feito algumas viagens antes, sempre para destinos consagrados. Europa, Estados Unidos, países da América Latina… O Brasil eu conhecia quase inteiro por conta do trabalho como …
O Azan, ou chamado para a oração do Islamismo, pode ser traduzido da seguinte forma: “Deus é o maior (repete 4 vezes). Testemunho que não há outra divindade além de Deus (2x). Testemunho que Maomé é o mensageiro de Deus (2x). Venha para a oração (2x). Venha para a salvação (2x). A oração é melhor que o sono (2x). Deus é o maior (2x). Não há outra divindade além de Deus. (1x).”
O seu texto me lembrou uma anotação que tenho guardada, desde ano passado, sobre esse tema e ainda não tive coragem de publicar. Lembro que falo exatamente isso, ninguém é feliz o tempo todo, mas existem momentos em que estamos felizes, outros em que estamos tristes, outros em que estamos ansiosos e por aí vai. Uma anda de sensações e sentimentos que vivemos. Mas, "como me sinto a maior parte do tempo", me deixou bem reflexiva. Acho que "insatisfeita" também seria minha resposta, agora preciso entender minhas insatisfações. Ótimo texto! Obrigado por compartilhar
Fico muito feliz por ter despertado essa reflexão, Ferdinando, e torço para que você encontre os rumos da felicidade, ou melhor, para que você a reconheça, caso passe por ela. Obrigada por recomendar meus textos e meus livros, ganhei meu dia aqui!