[Escrita Viva #3] Perguntas filsóficas ao Marquês de Pombal
Da realidade à ficção num bolinho de bacalhau - ou a carta que começa como desabafo e termina como galhofa num domingo ensolarado em Lisboa
Duas semanas sozinho em Portugal. Longe de todos. Sem agenda externa a me impor sacrifícios. Sem agenda interna muito definida a ocupar os dias.
À deriva? Logo aqui, em Lisboa? De onde partiram as famosas naus que, sem vento nas velas, foram dar nas costas do Brasil?
Não consegui casa, continuo sem trabalho. O único porto é a escrita, mas mesmo isso, começo a questionar: de que serve esta newsletter? Como ela me ajuda no objetivo de me tornar escritor, além de me forçar a escrever?
Wanna read in English?
Será correto o passo que estou dando? O mestrado é o melhor neste momento? Começo a me questionar seriamente sobre todas as escolhas.
As perguntas nascem num café em Lisboa, na Praça Marquês de Pombal.
São registradas no diário, o famoso caderninho preto que me acompanha para todo lado.
Sinto-me vazio, esgotado na manhã ensolarada de um domingo. A produzir nada de relevante. Para mim, para ninguém. E os boletos, sempre eles, agora chegam em euros.
Como sustentar a vida na Europa? Vou conseguir trabalho? Será mais uma fuga das inseguranças, assim como são os livros?
54 anos, de volta à universidade, sem trabalho. Não era o que eu imaginava para mim nessa altura da vida.
(O que eu imaginava? A verdade? Nada. Nunca pensei no futuro. Sempre segui o fluxo, os caminhos que outros me apontavam.
E assim vim parar aqui. Sem direção, se ninguém me diz o que fazer. Ironicamente, bem ao lado da estátua do Marquês de Pombal.)
Marquês de Pombal, para quem jamais gostou de História, foi o Secretário de Estado mais influente da história de Portugal. Um homem que pensava saber o que era melhor para todos e governou com vontade de ferro por 27 anos.
Reconstruiu Lisboa e nos fez a nós, brasileiros, falantes da Língua Portuguesa.
Então o Marquês, pensa o quê? O que deve fazer o brasileiro à deriva em Lisboa?
(A expressão de prazer do estrangeiro desvia minha atenção do diário.
Na mesa ao lado há um casal. Ela está de costas para mim. Ele, de cabeça raspada, um caudaloso bigode a escorrer pelas laterais da boca, braço direito todo tatuado, se delicia com um bolinho de bacalhau.
A expressão no rosto após a primeira mordida não deixa dúvida. Ele tem certeza de ter feito a escolha certa para o café da manhã.
Não consigo perceber a língua que falam. Sou bastante surdo e o ruído do salão me impede de compreendê-los. Decido, porém, que são irlandeses.
Se quero ser ficcionista, já é hora de parar com o excesso de realidade. Posso decidir detalhes como esse por conta própria, pois não?
Além do mais, esse bigode, o verde vivo da camiseta, a língua enrolada e incompreensível. Irlandeses, pronto, está decidido.)
— Ei, você aí. Pare de fugir do assunto. Queres ou não meus conselhos?
O quê? Quem disse isso com?
— Despacha-te!
Olho para o centro da rotunda e a estátua do Marquês está a me encarar.
Deixou de olhar para a Baixa de Lisboa que ele reconstruiu após o Terramoto de 1755. Girou na minha direção e agora me encara com olhar severo, enquanto acaricia o leão a seu lado.
(Até onde se sabe, o Marquês de Pombal nunca teve um leão. O artista que esculpiu o monumento, porém, acrescentou o animal como símbolo do poder e da confiança que o governante demonstrava.
Poder, confiança. Certezas que me faltam no momento. Seria o Marquês um bom conselheiro?)
— Senhor Marquês, que aí do alto tudo vê: estou a fazer a coisa certa? O que o senhor me aconselha, do alto da sua sabedoria?
— É mais eficaz a moderação com que se repreende do que a severidade com que se castiga.
— Hum, parece-me filosofia de tasca. Não sei se ajuda muito, senhor Marquês. Podes descer desse pedestal, colocar mais os pés à terra? Vivo uma dúvida. Tomei a decisão correta? Tenho o que é preciso para um bom ficcionista?
— Há homens para tudo, até para andar no mar.
— Porra, Marquês, eu te pedindo para pisar no chão e você me vem com platitudes marítimas? Só falta agora colocar a culpa nos jesuítas.
— Até a entrada dos jesuítas, Portugal foi culto, próspero e poderoso. Em seguida, as letras agonizavam, o comércio definha…
— Não, Marquês, para! Isso não interessa. Quero saber: que devo fazer desse terramoto emocional em minha vida?
— Agora é enterrar os mortos e cuidar dos vivos.
— A sério? É tudo o que tens a dizer?
Ergo os olhos do caderninho. O Marquês está de volta à posição original, o olhos fixos na Baixa de Lisboa. E eu decido ir à montra pedir outro abatanado1 para cuidar melhor do vivo em meio aos terramotos pessoais.
[Mundo Afora #12] Vale a pena?
Na escuridão da madrugada, centenas de pontinhos formam a fila sinuosa de luzes. São lanternas. Amarradas às cabeças de turistas, sobem o Monte Batur, um dos vulcões ativos de Bali.
Palavra usada pelos Portugueses para denominar o café americano. Não me pergunte o por quê.
Adorei a conversa com o marquês, lembrei da Cecília e seu "ou isto ou aquilo" e da Dori, "continue a nadar". Sorte na caminhada!
Que alegria te ler! As dúvidas sempre teremos e são elas que nos impulsionam. Eis me aqui com 50 anos com projeto as mangas que ainda não nasceram para o mundo " real". Também sem trabalho, na cobrança ao meu redor e as vezes Também me permitindo ouvir a mente sussurrando a mesma novela de sempre Também caminho pelos passos que tu deste e nisso nos encontramos talvez numa confiança maior de que tudo apenas é.